O álbum de 1978 dos Kraftwerk, “The Man Machine” definiu um momento de referência na história da relação da música eletrónica com o formato clássico da canção pop. O que parecia uma visão do futuro ganhou com o tempo um estatuto de clássico. Texto: Nuno Galopim
O relativo isolamento face aos acontecimentos (musicais) do mundo em redor permitiram aos Kraftwerk dar, em 1978, um passo distinto, fazendo do álbum que editaram em maio desse ano não apenas um contraponto face ao que era as tendências pop/rock dominantes num tempo de transição de um clima dominado pela revolução punk num patamar que dela decorreu (e ao qual se chamou então new wave), como se afirmaria como o paradigma de referência de uma nova ordem na cultura pop: a pop electrónica emergia definitivamente aqui.
Já havia antecedentes, claro. Canções pop feitas com electrónicas, entenda-se. E alguns dos mais importantes exemplos haviam sido assinados pelos próprios Kraftwerk entre temas como Kommetenmedodie 2 (do álbum Autobahn, de 1974), Radio-Activity e Antenna (do disco de 1975) ou ainda em Hall of Mirrors ou Showroom Dummies (de Trans Europe Express). Em The Man Machine, contudo, o grupo dava um passo determinante em frente. E, se até então, entre os três álbuns editados entre 1974 e 1977, haviam demonstrado um particular interesse pela canção em alinhamentos onde havia uma preocupação conceptual maior, e que colocava em cena peças ora instrumentais ora usando a voz num contexto diferente (e desafiante, claro) do formato mais clássico da canção, desta vez apostaram em apresentar um álbum todo ele caracterizado por uma mais direta relação com essa identidade “clássica”. Um álbum pop.
Há variações entre a forma de entender a relação com a canção num alinhamento que tem como extremo mais distante dos modelos canónicos o quase instrumental Spacelab, mas que afirma em The Model o que seria o paradigma da canção pop electrónica de primeira geração. Pelo caminho há canções como Neon Lights (que teve versões depois assinadas por nomes tão diferentes como os OMD ou U2), Metropolis (que alude a memórias do filme clássico de Fritz Lang) ou o mais minimalista The Man Machine. E outro momento fulcral em The Robots, canção que volta a explorar o mesmo universo de referências já ensaiado em Showrooom Dummies, imaginando seres robotizados que chegam mesmo a dançar. We are dancing mekanik, cantam…
Se The Model representa a única expressão de uma personagem feminina como protagonista de uma canção dos Kraftwerk, num quadro narrativo que fala de moda e revistas, já temas como The Man Machine ou The Robots exploram e aprofundam uma visão do mensch maschine,o homem-máquina, uma diluição de fronteiras físicas entre o ser humano e a tecnologia, que no fundo acaba por dar ao álbum um cunho conceptual que assim sublinha uma das ideias mais importantes de toda a filosofia dos Kraftwerk.
Tal como sucedera com o álbum anterior, manequins foram usados para ações promocionais, nomeadamente a listening party de apresentação do disco que foi realizada em Paris, na recentemente inaugurada Torre Montparnasse, na qual os quatro bonecos fizeram as honras da casa enquanto o disco era tocado, o grupo tendo aparecido apenas durante cinco minutos para acenar e dar a entender que estavam ali.
Na capa do álbum vemo-los contudo naquela que talvez seja a mais icónica das fotos dos Kraftwerk. Um look austero – que tanto podia mostrar afinidades com ecos das Alemanha nazi como pelo presente do então Leste comunista, coisa que baralhou muitas almas e gerou discurso – mostrava os quatro músicos numa escada, de camisas vermelhas e gravatas negras, com lábios retocados e sobrancelhas sublinhadas. Na contracapa apresentam-se numa pose séria mas que sugere um humor quase camp que na verdade aprofunda a ideia de jogos de contrastes que habita uma música e uma identidade que não se pode avaliar a preto e branco.
Quando foi editado tornou-se no mais bem sucedido dos discos do grupo, apesar do ceticismo com que então era ainda acolhido do outro lado do Atlântico (a América só “acordaria” para os Kraftwerk nos anos 80 por via de pioneiros do hip hop e do techno). Pela Europa a adesão foi notória. E toda uma nova geração de bandas que então emergia tinha os Kraftwerk como uma das suas mais importantes fontes de inspiração. Os seus discos eram presenças certas nas noites que Rusty Egan e Steve Strange protagonizavam em Londres. Bandas como os Human League, OMD, Soft Cell, Depeche Mode daria visibilidade maior a um nova relação com a canção pop. Uma relação que não se fechava no eixo definido entre a Alemanha e o Reino Unido e que tinha também já expressão em lugares tão diferentes como a Bélgica (com os Telex), a Suíça (Yello), o Canadá (Ceramic Hello) ou o Japão (via Yellow Magic Orchestra). A voz dos Kraftwerk gerara descendências à escala global.