Depois de ter recebido uma primeira câmara (oferecida por Edith Piaf) em 1948, Charles Aznavour passou a filmar todos os dias. Olhava as gentes e os lugares por onde passava, e até mesmo os espaços da sua vida privada. Dessas memórias nasce um olhar autobiográfico no qual ainda chegou a trabalhar e que Marc di Domenico entretanto completou. Texto: Nuno Galopim

Diz-me quem (e como) filmas, e dir-te-emos quem és… É em volta desta ideia que ganha forma em Le Regard de Charles um olhar biográfico sobre Charles Aznavour que, ao invés de estar focado nas imagens e no era uma vez do protagonista, usa antes a câmara para nos mostrar onde e com quem esteve, como olhou, o que procurou ao seu redor quando quis, com uma câmara de filmar, fixar as memórias de que esteve ali e ali, e também ali…
Em 1948 Edith Piaf deu-lhe uma primeira câmara de filmar. E desde então, com essa e outras câmaras, Aznavour foi captando, em filmes de 8 e 16 mm, imagens de momentos do mundo pelo qual passou em digressão e em férias, reuniões de trabalho e de família, amores, amigos… Filmou e guardou imagens até ao dia em que manifestou o desejo de que daquele vasto arquivo pudesse nascer um filme. Era como um diário, usando as imagens para mostrar o que as palavras habitualmente estão mais habituadas a contar. Chamou Marc di Domenico, que chegara a filmá-lo, para uma tarefa que o tempo não lhe permitiu completar… Mas tal como recentemente sucedeu com uma autobiografia em filme de George Michael, este retrato de Aznavour por si mesmo foi concluído por aqueles a quem confiou a revelação dos segredos destas imagens. E eis que passou este sábado revelando não apenas um dos melhores documentários este ano programados pela secção Indie Music como um filme com evidente potencial para ter, depois, vida própria para lá dos festivais (a quem cabe, é verdade, o papel de os revelar).
Ao ver Le Regard de Charles lembrei-me do livro Diário de Bicicleta, através do qual David Byrne nos apresentava (depois de passeios a pedais) os lugares pelos quais passava em tempo de digressão. Tal como David Byrne, a câmara de Aznavour olha sobretudo para as gentes e os lugares à sua volta. Em Nova Iorque, em Londres, nas grandes altitudes andinas, nas águas que banham a Grécia, em Tóquio ou Hong Kong, numa viagem à Arménia (onde a sua família tem raízes, tendo ali finalmente conhecido a sua avó)… Observa… E, sublinhe-se, tem o olhar de um fotógrafo. Um bom fotógrafo.
A partir destas imagens Marc di Domenico encontrou um caminho narrativo que junta as deambulações (sobretudo nos anos 60, numa delas reencontrando até mesmo Edith Piaf em Nova Iorque) e momentos mais íntimos captados em ambiente de casa ou de férias. E, juntamente com Antoine Barraud, criou um percurso feito de palavras que se junta às imagens, cabendo ao ator Roman Duris vestir aqui a pele de um Aznavour que nos conduz, lançando aqui e ali algumas pistas que juntam à contemplação das imagens e aparentes reflexões alguns dados que definem os alicerces da biografia que, assim, aqui também se estrutura aos poucos. A estas imagens de arquivo e à construção narrativa verbal juntam-se ecos da música de Aznavour, ora em versões instrumentais ou nas canções como os discos as apresentaram, ocasionalmente surgindo imagens de outros arquivos que assim garantem ao filme a presença do que era a face pública, profissional, daquele que aqui se expõe. Vale a pena sublinhar como a câmara de Aznavour por vezes pode acrescentar pontos de vista a outras imagens já antes conhecidas. Como acontece, por exemplo, durante a rodagem de Um Táxi para Tobrouk (1961), de Denys de la Patellière. Numa cena em que Aznavour e companheiros seguem a bordo de um jipe, o cantor juntou a câmara ao carro, a pouco mais de um metro da que captava as imagens para o filme. O metro de distância, o ângulo inevitavelmente diferente e, acima de tudo, o facto de a câmara de Aznavour estar a filmar a cores, mostram como o seu “olhar” pode juntar algo de novo, até mesmo ao que já conhecemos (isto para não falar do muito que o filme nos mostra e que antes nunca vimos).
“Le Regard de Charles”, de Marc di Domenico, teve estreia este sábado no Indie Lisboa. Volta a ser exibido dia 5, às 19.00 horas, na Sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge.