O documentário “The Heart is a Drum”, que passa hoje no Indie Lisboa, tem como protagonista o músico alemão Klaus Dinger (Kraftwerk, Neu! e La Dusseldorf) e conta-nos a história das reais origens do som que o baterista então criou. Texto: Nuno Galopim

E se afinal as coisas não fosse bem como sempre as tínhamos imaginado? No fundo essa é a desconstrução romântica que encontramos em The Heart is a Drum, um documentário que tem como protagonista o músico alemão Klaus Dinger, um dos nomes maiores do universo ao qual a crítica (inglesa) aplicou o rótulo de krautrock e que associamos, sobretudo, à emergência de um discurso rítmico regular, metronómico, aparentemente incessante ao qual, igualmente nas páginas da imprensa musical, se associou a designação ‘motorik’… E se tudo, afinal, fossa mais coisa do coração do que da mecânica?…
Cético do discurso sobre música do jornalismo musical, Klaus Dinger não dava entrevistas. Nem quando integrou (logo no início) os Kraftwerk, nem quando crouu, com Michael Rother, os Neu! Ou, mais tarde, quando definiu uma visão pop para o futuro com os La Dusseldorf… Essa recusa não foi absoluta nem definitiva. E nos anos 90 uma das raras ocasiões em que falou, e com a franqueza e a candura de quem sabe já medir e relativizar o peso do tempo que passou, Klaus Dinger falou, pelo telefone, com um jornalista sueco… Houve contudo algo inesperado que brotou entre as revelações dessa entrevista. Mais do que querer apenas falar do ambiente musical que conheceu em Duddeldforf, nos anos 70, Klaus Dinger fez questão de recuar a umas férias, em 1971, algures na suécia. Uma tarde, num barco, num lago, ligou o microfone do seu gravador portátil e captou os sons do ambiente ao seu redor, que depois usaria em Lieber Honig (do disco de estreia dos Neu!). Mas mais do que o eco dos sons de água dessa tarde, foi o desfecho dessa relação, com a jovem que o acompanhava a partir para a Noruega (para não voltar) que deixou em Klaus Dinger as marcas de dor num coração cujo batimento ele mesmo depois foi recriando pelo seu modo peculiar, intenso e metronómico, de tocar baterial. O ritmo ‘motorik’, tantas vezes associado a uma ideia de motor, de repetição de movimentos numa estrada, de precisão (alemã) não é mais senão… o som de um coração despedaçado. Na entrevista, que escutamos ao longo do documentário, o próprio Klaus reconhece esta origem “cardíaca” da sua batida e refuta o termo ‘motorik’. Nunca o usaria… Quando muito, explica, diria “motorisch”… Os mitos nascem muitas vezes por quem não os protagoniza.
O título, muito a propósito, que Jacon Frössén dá a The Heart is a Drum, não fecha, contudo, a história de Klaus Dinger nessa memória de romance desfeito em 1971 (se bem que os ecos desse momento tenham exercido claras repercussões na sua vida e obra). Ao mesmo tempo que compreendemos a real origem da pulsação da sua linguagem como baterista (que rapidamente foi reconhecida por quem escutava os Neu!), o documentário faz questão de escutar músicos que reconheceram o que de novo Klaus Dinger levou à música alemã na aurora dos anos 70 e nele encontraram uma referência. Iggy Pop, que começou a sua vida na música como baterista de uma banda nos dias de escola, conviveu de perto com os ecos dos Neu! e do kraurock quando viveu em Berlim na segunda metade dos anos 70. E aqui fala-nos tanto da assinatura artística de Klaus Dinger como do seu quotidiano berlinense. Escutamos ainda nomes como Bobby Gillespie (Primal Scream), Wolfgang Flur (Kraftwerk) ou Stephen Morris (New Order), todos eles criando um coro que nos ajuda não só a caracterizar o legado de Klaus Dinger como a sublinhar o modo como aquele modo de lidar com o ritmo gerou vasta descendência.
Sem se fechar, dada toda esta dimensão vivida pelos outros, num mero arco biográfico, The Heart is a Drum, não deixa de nos assegurar o desenho da história da vida e obra de Klaus Dinger. Depois dos Neu! (de quem há uma bela coleção de imagens) passamos brevemente pelos La Dusseldorf e pela própria reunião com Michael Rother nos anos 80 (notando depois este último as enormes diferenças de personalidade entre ambos os músicos). A narrativa conduz-nos até aos últimos dias de vida de Dinger, à casa onde os viuveu, a companheira que o acomopanhou e o projeto inacabado com os Japandorf (entretanto editado em disco)…
E a jovem sueca? A tal que partira para a Noruega… Sem fazer deste texto um spoiler, vale a pena notar que o realizador a procurou… O que aconteceu? Aí nada como ver o filme para conhecer o desfecho desta história de um coração despedaçado que, através de uma bateria, se tornou numa referência marcante na história da música dos anos 70.
The Heart is a Drum, de Jacon Frössén, passa hoje pelas 21.30 na Sala 3 do Cinema São Jorge, integrado na secção Indie Music do festival Indie Lisboa.