Desapareceu, aos 93 anos, uma figura com expressão na canção e no cinema que foi mais do que um mero ícone ou caso de sucesso. Foi uma musa capaz de inspirar e seduzir poetas, cineastas e músicos. A sua obra em disco merecia, contudo, maior visibilidade no presente. Texto: Nuno Galopim

Era a última das vozes de um tempo que deu à canção o fulgor das palavras de grandes poetas em língua francesa. De facto a sua voz, mas também o seu corpo, tornaram vivas (e suas) ideias, olhares, sonhos e desejos. A personalidade vincada no canto e nos gestos, a atitude de entrega a uma vida de boémia que ganhou forma em volta de Saint Germain des Près depois do fim da guerra (e que fez daquela zona de Paris um polo de agitação de toda uma cultura que depois se deu a ler, ver e escutar ao mundo) tornou-a mais do que apenas um caso de sucesso na canção. Juliette Gréco foi ícone. Foi musa. Inspirou intelectuais, autores. Inspirou os Beatles. Apaixonou Miles Davies. Cativou compositores, poetas e realizadores de cinema. Era um símbolo de um tempo e de uma ideia. Desapareceu aos 93 anos. E deixa uma vasta obra que o tempo não poderá erodir.
Nascida em Montpellier em 1927 com traços mediterrânicos no rosto (filha de um pai corso e com uma história de família com ascendência grega) viveu, com pai ausente, entre os avós e mãe até aos dias em que, durante a ocupação nazi (com a família claramente ligada a ações da resistência), deu por si numa prisão alemã, na qual ficou sozinha depois de a mãe e irmã terem sido deportadas para um campo de concentração. Rumou a Paris no fim da guerra e foi ali que transitou de um sonho de infância em ser bailarina para um outro tipo de relacionamento com os palcos: a poesia ia ser a sua voz. Começou por lê-la antes de a tornar corpo de canção.
Sartre foi dos primeiros a notá-la. E num 78 rotações de 1950 ouvimo-la a dar voz a uma canção que brotou do seu Rue des Blancs Manteux. Aos discos, que foram surgindo com regularidade nos anos 50, juntaram-se os filmes. Jean Cocteau chamou-a a Ofreu. Na verdade já pisara antes os palcos do teatro (desde 1946) e tivera primeiros papéis em finais dos anos 40 em filmes de Louis Daquin ou Alexadre Asturc. Mas é depois da colaboração com Cocteau que a vemos no cinema de Renoir ou Melville, antes de rumar a Hollywood para filmar com Otto Preminger, John Houston ou Richard Fleischer.



Se o cinema partilhou com os discos (e os palcos) as suas maiores atenções nos anos 50, depois de 60 é na música que concentra atenções. É contudo entre os títulos que regista entre essas duas décadas, que vinca a carga única de uma voz e uma forma de cantar que torna suas as interpretações de canções de Trenet, Brel, Gainsbourg, Ferré ou Brassens, entre outros mais, cimentando um lugar na história da chanson que a acolhe, intérprete, entre um mundo de autores. É certo que a sua obra não se esgota aí. E mesmo conhecendo depois uma progressiva desaceleração no ritmo das gravações, edições e digressões, não deixa de se manter ativa até que a saúde a obriga a retirar em 2015, partindo uma última vez para a estrada com uma tour na qual agradeceu toda a atenção que os anos lhe souberam dar.