“Sign O’The Times”… Viagem aos bastidores de uma obra prima

Editado em 1987, o álbum surgiu de uma sucessão de acontecimentos que envolveu a separação dos Revolution e a gravação de três álbuns que ficaram na gaveta. O que aconteceu nesse período (com uma multidão de inéditos) surge agora numa caixa. Texto: Nuno Galopim

Dado o fracasso na bilheteira de Under a Cherry Moon, o filme criado a par com as canções entretanto editadas no álbum Parade, a estrada surgiu como inevitável espaço de busca de novo equilíbrio nas contas. O ambiente interno entre os músicos que compunham os Revolution não era o mesmo de outrora e o coletivo só não se dissolveu antes de uma nova série de datas porque os músicos foram convencidos a ficar a bordo. Por essa altura, apesar das rotinas do palco, Prince estava já focado na finalização de mais um novo álbum. Na verdade, entre Around The Word in a Day, e ao mesmo tempo que trabalhava no filme Under a Cherry Moon e o álbum Parade que lhe serviu de banda sonora, Prince criou três álbuns que ficaram na gaveta.

O primeiro, com o título de trabalho Dream Factory, era um esforço conjunto, explorando os mapas de colaborações internas possíveis entre os músicos dos Revolution e olhando, uma vez mais, além da linha do horizonte, cruzando formas, referências e ideias… O disco caiu na gaveta, esquecido, ao mesmo tempo que os Revolution se separavam definitivamente, estando a recente opção de Prince em focar as atuações nos azimutes mais funk e soul da sua música entre as razões do desconforto mutuamente sentido.

Com Dream Factory na gaveta, Prince concentrou esforços numa aventura mais solitária, filtrada através da criação de um alter-ego nascido depois de um erro em estúdio. O som acelerado da sua voz abriu caminho à criação de Camille, disco com o nome de uma figura (inspirada por um alter-ego) que levantava ambiguidades na representação vocal de género pela qual Prince então fez nascer novas canções. Mas Camille acabaria igualmente na gaveta, surgindo então uma visão mais arrojada, recuperando algumas das canções desses dois projetos e juntando outras entretanto criadas, a que Prince chamou Crystal Ball e que se materializava na forma de um álbum triplo. Ao ecletismo vivido durante a parceria com os Revolution, que valera de algumas críticas por eventuais cedências ao público branco, Prince respondia com um reencontro com os valores primordiais da sua identidade. Mas nem todos ficaram satisfeitos com a opção. Mas mais do que nos caminhos da música era a extensão do disco que gerava o maior incómodo. E a editora recusou a ideia e pediu-lhe que o reduzisse a dois terços da extensão… E é aí que, em vez de um Crystal Ball amputado, Prince opta por criar um novo alinhamento, uma vez mais tomado pela presença de novas canções, ao qual acabaria por chamar Sign O’The Times.

Prince tinha já uma canção, minimalista, de temática social atual bem evidente (sobre o VIH e lançando metáforas a várias formas de exclusão), que Prince então puxa para a abertura do alinhamento do álbum que então ganha forma. Junta, de novo, um dueto com Sheena Easton – U Got The Look – gravado já depois de todos os demais temas. Recupera uma canção deixada de lado em 1979 (I Could Never Take The Place of Your Man), ms sobretudo entre o que tinha composto e gravado entre 1985 e 86, juntando algumas peças novas, eis que nasceu Sign O’The Times. E, com um duplo álbum novamente eclético em mãos, recebe então o “sim” para avançar.

As críticas foram mais entusiasmadas do que nunca, vincando uma vez mais a visão de grande amplitude musical que aqui se mostrava, temática e instrumentalmente diversa e surpreendente. Dos motores de dança irresistíveis de Housequake e Hot Thing às ambiguidades encenadas em If I Was Your Girlfriend (onde encontramos ecos de Camille), não esquecendo as pontes pop/rock que, desta vez, têm exemplo maior em I Could Never Take The Place of Your Man ou as qualidades teatrais de Starfish and Coffee (que sugerem o que poderia ser o interesse de Prince, por esta altura, pela eventual criação de um musical), Sign “O” The Times acabaria por reunir um lote de canções pelas quais se traduzia o melhor das visões de um músico a viver um pico de forma. Durante a etapa final da digressão europeia uma equipa de filmagem entrou em cena captando o corpo central das imagens que fariam de Sign “O” The Times o terceiro filme de Prince e um dos filmes-concerto mais elogiados dos anos 80.

Quanto às canções de Dream Factory e do disco criado sob o alter-ego Camille, a coisa ficou entre bootlegs lançados e eventuais farrapos de peças recuperadas eventualmente num ou outro alinhamento ao vivo. Teríamos de esperar até 1998 para encontrar algumas destas canções no quádruplo álbum The Crystal Ball, mas na verdade esse disco não corresponde exatamente ao álbum submetido à editora em 1986. E como o sabemos? Porque essa é uma das (muitas) revelações que agora encontramos numa edição especial que apresenta uma versão remasterizada de Sign O’The Times como ponto de partida mas que, na verdade, é uma caixa que conta a história de um período intensamente criativo que esse disco, por genial que seja (e é) não retratou no alinhamento apresentado em 1987.

Antes de mergulhar na caixa, vale a pena sublinhar o contexto (macro e micro) em que estas gravações ganham forma. Por um lado há um mundo em ebulição com notícias a dar conta do crescimento de casos de sida, focos de fome, instabilidade política no mapa internacional. Prince também não ficou indiferente perante a notícia da explosão do Challenger num tempo em que a sua vida passou por separações, uma no plano íntimo, outra a dos Revolution. Data ainda deste período a construção de uma casa em Galpin Bloulevard (no subúrbio de Chanhassen, a sudoeste de Minneapolis), na qual instala – na cave – um estúdio que lhe permite gravar a qualquer momento. As instalações não tinham contudo dimensões colossais pelo que, quando gravava com banda, dividiam-se os músicos entre a sala no piso térreo (onde estava o piano), o estúdio e a régie. Nascendo na verdade numa transversal da rua suburbana onde morava, o complexo de Paisley Park inaugura na reta final deste período, havendo na caixa primeiros ecos das gravações ali captadas.

É entre este mapa de convulsões pessoais e globais que emergem os discos que ficam na gaveta – Dream Factory, Camille e Crystal Ball – e Sign O’The Times finalmente editado em 1987. A nova caixa, que junta 8 CD (ou 13 LP na versão em vinil) e um DVD a um livro de 120 páginas da dimensão de um booklet de álbum em vinil (que inclui textos, informação sobre as gravações, reproduções de manuscritos com as letras e muitas fotos inéditas de sessões desta etapa), começa por incluir o alinhamento original de Sign O’The Times com o som remasterizado (CD1 e CD2), juntando num terceiro disco o material dos quatro singles extraídos do álbum – além do tema título foram lançados If Was Your Girlfriend, U Got The Look e I Could Never Take The Place of Your Man – reunindo os edits das edições em sete polegadas, as remisturas lançadas nos máxis e os lados B, entre os quais estão temas poderosos que podiam ter merecido estatuto de lado A como Hot Thing ou Housequake ou outros que surgiram exclusivamente nesses formatos a 45 RPM. O maior tesouro da caixa é a multidão de gravações inéditas que ocupam os CD4, CD5 e CD6 que representam uma incursão no arquivo The Vault, entre as quais encontramos não só temas dos álbuns que ficaram na gaveta neste período e até mesmo outras faixas, ora destinadas a parcerias ora temas que nem sequer foram considerados para quaisquer alinhamentos… Há ainda um par de CD (7 e 8) com o registo em áudio de um concerto da digressão que se seguiu ao lançamento de Sign O’The Times (captado em Utrecht, na Holanda, em julho de 1987). O DVD por sua vez junta o registo de uma noite ao vivo no soundstage no coração do complexo de Pailsey Park numa “festa” a 31 de dezembro de 1987, como que a fechar um ciclo.

É precisamente num momento desse concerto em Paisley Park que entra em palco uma figura sobre a qual há muito se mitificava sobre a sua presença nos arquivos de Prince. Em momento de festim de fim de concerto, Miles Davis partilha o palco com Prince e os músicos… Mas essa não é a única presença de Miles Davis nesta caixa, já que no CD4 encontramos o inédito Can I Play With U?, um tema composto em 1986 por Prince a pensar numa eventual presença no álbum Tutu, do músico de jazz, que representaria então a sua estreia no catálogo (comum entre ambos) da Warner… Contam as notas que descrevem todos os temas de arquivo aqui reunidos que, depois de escutada a contribuição de Miles, Prince manteve na mistura o seu trompete mas, achando não estar o tema à altura de outros gravados para Tutu, retirou a submissão e, desde então, esta gravação estava guardada e calada no arquivo. Miles não representa a única história de colaboração que encontramos nas faixas aqui reveladas. Há três canções destinadas a Bonnie Riatt. E uma que foi criada para Joni Mitchell (uma das figuras mais admiradas por Prince). Mas aqui foi Joni Mitchell quem “respeitosamente” declinou Emotional Pump.

Com apenas dois episódios que transcendem o intervalo definido entre 18 de junho de 1985 e 10 de 25 de janeiro de 1987 que ocupa os três CD de material de arquivo aqui recuperado – e que correspondem um deles à versão de 1979, original, de I Could Never Take The Place of Your Man e a um segundo take de Big Tall Wall (que chegou a ser apontado ao alinhamento de Grafitti Bridge) – esta viagem no tempo está cronologicamente ordenada e revela a progressiva presença de elementos destinados quer aos discos que acabaram na gaveta quer ao álbum de facto editado e até primeiros sinais do que surgira depois em Lovesexy (1988) ou hipóteses para um eventual musical. O lote de gravações traduz não só uma abertura de horizontes a desafios estéticos, mas também sinais uma clara presença nas canções de ecos do mundo pessoal de Prince e da ordem política e social global. Big Tall Wall sugere a ideia de um muro que vinca o afastamento que se segue a uma separação. Já Crystal Ball nasceu sob a ressonância em Prince de notícias de bombardeamentos americanos na Líbia em abril de 1986. A presença dos Revolution e o evidente entendimento do corpo coletivo da banda é evidente em várias gravações conjuntas feitas no estúdio caseiro em Galpin Blv… A presença de Susdan Rogers, engenheira de som, é igualmente marcante. Mas são sobretudo as figuras de Wendy Melvoin e Lisa Coleman talvez as que mais se destacam nesta etapa no plano das colaborações, evidenciando as notas a liberdade e confiança com que Prince lhes pedia ideias, alternativas, arranjos… Um dos tesouros maiores desta coleção de memórias é A Place In Heaven, canção que Prince começou por gravar (está aqui essa versão) e depois cedeu a Lisa (igualmente presente nesta caixa), surgindo ainda a dada altura a experiência com rebobinados Nevaeh Ni Ecalp A (que aqui também podíamos escutar). A canção começou por ser destinada a Dream Factory, depois passou para o alinhamento de Crystal Ball e desde então ficou em suspensão… Esta é uma das muitas memórias que a arqueologia pop em volta do arquivo The Vault de Prince nos permite agora conhecer… E acreditem que há neste alinhamento motivos para muitas mais boas surpresas e revelações. Que esta caixa seja exemplo para o que podemos fazer brotar de um arquivo. Porque as memórias guardadas podem contar-nos muito. Por vezes mais ainda do que os álbuns originalmente editados. E disso esta caixa é um belo exemplo.

“Sign O’The Times (Super DeLuxe)”, de Prince, é uma edição de 8CD + DVD ou 13LP + DVD, com um booklet de 120 páguinas, num lançamento da Rhino. O áudio dos 8CD está disponível nas plataformas digitais. Ao mesmo tempo foi ainda lançada uma edição remasterizada do álbum em LP e CD.

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