A voz política de Lou Reed num álbum que tomou Nova Iorque para falar do seu tempo

Editado em 1989, o clássico “New York” regressa numa edição especial que inclui material inédito do arquivo de Lou Reed. Mas além dos tesouros de arqueologia, a força política destas canções seria só por si motivo suficiente para um reencontro. Texto: Nuno Galopim

Não é invulgar vermos, hoje, referências a New York como sendo a obra-prima da discografia a solo de Lou Reed. Apesar do sucesso (histórico) de Transformer (1972), da beleza cortante de Berlin (1973) ou da excelência do tardio The Raven (2003), este foi um disco que, optando por uma abordagem rock’n’roll clássica e quase minimalista, vincou de modo mais cortante a carga das palavras. A poesia é o epicentro de New York. E se a cidade serve de um microcosmos no qual encontramos hotéis decrépitos, personagens que traduzem vidas da cidade (como o veterano de que fala Xmas In February ou doentes com sida em Halloween Parade) figuras reais (de Giulliani aos “Trumps”, como refere em Sick Of You), na verdade New York fixou, a fechar os oitentas (marcados pela administração de Reagan), um olhar crítico sobre a América (sem esquecer ligações maiores ao resto do mundo). Sim, este é um álbum profundamente político. E tal era a consciência do próprio Lou Reed sobre a força destes poemas que chegou mesmo a ponderar a hipótese, não concretizada, de antecipar o lançamento do álbum para antes da eleição de 8 de novembro de 1988 que deu vitória ao republicano George Bush (pai), que fora vice de Reagan, sobre o democrata Michael Dukakis (curiosamente é de Jesse Jackson, outro dos candidatos à nomeação democrata, que Lou Reed fala, sob um prisma crítico, em Good Evening Mr Waldheim). Passadas três décadas New York adquiriu o estatuto de um clássico. Mas se voltarmos a mergulhar nas palavras encontramos um olhar crítico que, afinal, ainda ressoa no tempo presente. É por isso um disco “vivo” aquele que, agora, reencontramos numa edição especial que não só recupera o disco com som remasterizado como junta outras frentes de abordagem feitas através dos arquivos de Lou Reed, que hoje pertencem à grande biblioteca pública da sua cidade.

            New York era, logo à partida, um disco destinado a começar um novo percurso. Depois de passada parte da década de 80 na RCA, o disco correspondia à estreia numa nova editora – a Warner – para a qual estava a nascer (em simultâneo) um projeto de homenagem ao recentemente desaparecido Andy Warhol, e que reuniria Lou Reed com o velho parceiro John Cale. Na verdade o sucesso de New York e a aclamação de Songs For Drella podem ter estado na raiz da reunião da formação histórica dos Velvet Underground, para uma digressão que correu palcos em meados dos anos 90. Este disco, de certa forma, abriu portas, já que a baterista Moe Tucker aqui colabora em dois temas, um deles o belo Dime Store Mystery, que fecha o lado B de New York e representa já uma primeira homenagem de Lou Reed a Warhol.

            O grande entendimento que nasceu entre Lou Reed e o guitarrista Mike Rathke e o entusiasmo com que escutou a primeira sessão captada por Fred Maher (a quem terá dito que há muito tempo que não escutava “o verdadeiro Lou Reed” numa gravação), motivaram a decisão estética de manter a música simples e direta, assegurando assim o protagonismo das palavras tal como pretendia. Lou Reed foi igualmente claro numa outra questão: o alinhamento e as canções eram intocáveis. Nem mais ou menos uma nota ou uma palavra… E assim nasceu o esforço técnico para “arrumar” as 14 canções nas duas faces do vinil (para não encarecer o disco, caso tivesse de ser editado como duplo, o que não aconteceu).

Esta edição, porém, trata (finalmente) New York como álbum duplo, dividindo as canções nas quatro faces dos dois LP que encontramos na caixa. Os três CD juntam depois o álbum remasterizado (CD1), gravações o vivo de todas as faixas do álbum captadas em vários concertos da digressão que se seguiu ao lançamento do disco e na qual o álbum era apresentado de fio a pavio, com espaço para clássicos no final do alinhamento (CD3). O CD2 junta ensaios (muitos deles apenas com a guitarra, ainda sem voz), misturas preliminares, o instrumental The Rock (na verdade uma improvisação para duas guitarras que foi usada como lado B na edição em máxi-single de Dirty Boulevard) e ainda dois dos “clássicos” apresentados na reta final dos concertos (Sweet Jane e Walk On The Wild Side). Há ainda um DVD com um concerto desta mesma digressão que chegou a ser editado em suportes de VHS e laserdisc em 1990. Entre os extras do DVD há uma entrevista (mais monólogo, na verdade) que nos deixa escutar Lou Reed a contar a história deste álbum.

O booklet que acompanha o disco junta as letras, algumas fotos e um texto que contextualiza o álbum e relata a sua criação, embora esteja mais focado no processo musical do que na dimensão política do disco. E aqui não era má ideia refletir um pouco sobre a escrita de “liner notes” em discos. Na maioria das ocasiões os textos cabem a jornalistas na área da música, biógrafos, velhos colaboradores… Não era má ideia contar de vez em quando com olhares complementares que nos ajudem a encarar o lugar político e social que os discos podem talhar na história. E New York não perderia nada se juntasse a estas memórias uma reflexão sobre a visão política de Lou Reed no quadro da política americana e global da altura. De quê e de quem falam estas canções? Seria uma boa leitura para ajudar enquadrar os significados deste disco magnífico. Porque nem só quem fala habitualmente sobre música tem coisas a dizer sobre os discos.

“New York (Deluxe Edition)”, de Lou Reed, é uma caixa com 2LP, 3CD e um DVD, numa edição da Rhino.

Um pensamento

  1. Efectivamente,uma voz politica sobre NY.Walk on the wild side é omeu destáque para o concerto que deu em cascais(no pav.do dramático)finais anos setenta,onde ele deu tudo 3 horas de espéctaculo.Nós não vamos esquecer!!!.

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