O álbum de 1983 que mostrou que os New Order tinham encontrado a sua voz

Um ano depois de uma edição semelhante dedicada a “Movement” agora chega uma caixa que recorda “Power Corruption and Lies” juntando gravações de trabalho em estúdio e registos ao vivo que ajudam a explicar a evolução do som dos New Order. Texto: Nuno Galopim

Não deve ter sido fácil começar de novo. Sobretudo quando uma tragédia tinha decretado o fim dos Joy Division de forma abrupta e inesperada (apesar dos indícios subliminares nas canções do álbum que tinham acabado de gravar). Decidiram continuar, naturalmente. E com um novo nome: New Order. Porém a estreia em disco dos New Order fez-se com um single que representou ainda uma ligação evidente aos Joy Division. Ceremony tinha sido uma das últimas composições criadas em conjunto com Ian Curtis e há, de resto, várias gravações da canção em discos dos Joy Division (como por exemplo Still). E no lado B surgia In a Lonely Place, que, tal como Ceremony, apresentava autoria creditada aos Joy Division. Lançado em 1981, o single assinalou a estreia em disco dos New Order na sua formação inicial com apenas os três ex-Joy Division. Após a entrada de Gillian Gilbert, o tema foi regravado e novamente editado, uma vez mais com produção de Martin Hannett… Em ambas as versões as afinidades com o passado direto da banda são notórias, algo que se notaria ainda em Movement, o álbum de estreia editado também em 1981.

Mas logo depois há algo que começa a mudar… A presença com maior protagonismo das eletrónicas já se tinha notado em Procession, segundo single lançado ainda em 1981, mas na verdade não era muito mais do que a continuidade de uma presença que se tinha já tornado evidente em gravações finais dos Joy Division como Love Will Tear Us Apart ou Atmosphere. Mas há então uma viagem a Nova Iorque… E, como um interruptor que abre um circuito, a cidade operou transformações que logo começaram a fazer-se notar. E em Everything’s Gone Green (1981), o terceiro single revelava-se uma vontade em explorar novos desafios com sequenciadores e o apelo à pista de dança. Foi durante as sessões de gravação deste single que o produtor Martin Hannett, que tinha trabalhado com os Joy Division e as primeiras gravações dos New Order, sentiu que aquele não era mais o seu caminho. Afastou-se… E, sob os estímulos encontrados em Nova Iorque e longe de Martin Hannett, os New Order deram luz verde a uma mudança de rumo que os levaria para longe, rumo à descoberta de uma nova identidade que teria como primeira manifestação maior (ou seja já depois do single de 1982 Temptation) o álbum Power Corruption and Lies e o single Blue Monday. Juntos, em 1983, estes dois discos foram o seu grito do Ipiranga.

              Seguindo o modelo sugerido pela caixa que contou em 2019 a história do álbum Movement, a nova edição especial (com capa cor de rosa) dos New Order faz-nos mergulhar no processo de transformação que os conduziu a Power Corruption and Lies. O álbum, que tem em faixas como Age of Consent, We All Stand ou Leave Me Alone as mais evidentes pontes de ligação à sua etapa anterior (ainda dominada pelas guitarras), respira sobretudo os ares de desafio da integração de novas máquinas (sequenciadores, caixas de ritmo, percussão sintetizada, um emulator e outros sintetizadores) em canções como The Village, 586 ou Ultraviolence, cabendo a Your Silent Face o momento de mais profunda afirmação de uma nova linguagem moldada pela assimilação das eletrónicas. Entre o CD extra da nova caixa há “writting sessions” que nos permitem encontrar etapas ainda precoces do trabalho nestas canções. Uma sessão gravada para John Peel (na BBC) ajuda igualmente a observar o processo de progressiva maturação de We All Stand e 586, juntando ao alinhamento uma versão de Turn The Heater On (que se diz ter sido a canção preferida de Ian Curtis) e inclui o então inédito Too Late (que surge apenas nesta gravação), acrescentando o CD 2 da caixa um outtake instrumental deste tema, assim como as primeiras abordagens a Blue Monday, tema que nasceu para ser um instrumental mas que depois, em estúdio, tomou o caminho que conhecemos, tendo-se tornado na mais célebre das canções dos New Order.

              Tal como na caixa anterior, uma das maiores apostas na divulgação de material inédito de arquivo incide em memórias em vídeo, muitas delas certamente captadas por câmaras amadoras apenas com o objetivo de documentar o que tinha acontecido aqui e ali. Mas hoje, quase 40 anos depois, o registo integral de dois concertos na Haçienda em 1982 e 1983 e um no Rosehill Hotel (Irlanda) em 1983, juntamente com fragmentos de outras atuações ao vivo entre 1983 e 84, tanto em programas de TV como em concerto, ajudam a entender como os próprios New Order foram tateando as possibilidades, moldando as canções, aprimorando as formas até chegar às visões que os discos depois fixaram. É delicioso reencontrar o tom “famíliar” da relação da banda com o espaço e a plateia na Haçienda (que tinha aberto as portas em 1982). E vale a pena notar como aqui não de apaga o tremendo prego de Gillian Gilbert quando, num concerto em Birmingham em 1983, a banda resolve evocar Love Will Tear Us Apart. Entre os conteúdos vídeo a caixa junta ainda o documentário muito peculiar que os próprios New Order criaram para o Channel 4 em 1984. Com o título Play At Home, inclui entrevistas a Tony Wilson (na banheira de sua casa), Alan Erasmus, Rob Greton, Martin Hannett ou Peter Saville, entre outros, servindo na verdade para nos dar um retrato do ambiente que então caracterizava a Factory Records e a relação, não unânime, que então havia para com a Haçienda, uma das suas maiores criações (de resto com o número de catálogo Fac 51, como se fosse um disco).

Além dos dois DVD e o CD com os extras a caixa desta edição “definitiva” inclui o álbum original tanto em vinil como em CD e ainda um livro com imagens da época, fotos dos instrumentos usados e textos (atuais e da época). Assim se trata bem um arquivo.

“Power Corruption and Lies (Definitive Edition)” é uma caixa com um LP, dois CD, dois e um livro, lançada pela Rhino. Os conteúdos dos dois CD da caixa estão disponíveis nas plataformas digitais.

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