Reencontrar “Absolute Beginers” não revela apenas a memória das canções. Há ali uma face política que convém não ignorar.

Originalmente estreado em 1986, e agora disponível em Blu-Ray, “Absolute Beginers”, realizado por Julien Temple, junta ecos pop e jazzy do Soho dos anos 50 a uma trama que nota o crescimento de um nacionalismo xenófobo na Londres de então. Texto: Nuno Galopim

Depois de algumas produções que levaram a ópera rock dos palcos para os ecrãs de cinema e de dois casos de sucesso com John Travolta como protagonista – Febre de Sábado à Noite e Grease – o filme musical viveu uma relativa travessia do deserto na primeira metade da década de 80. E em parte podemos justificar a dieta de acontecimentos com o surgimento dos telediscos como uma ferramenta de comunicação para a indústria da música e o consequente desvio de prioridades do grande para o pequeno ecrã na hora de pensar novas imagens para novas músicas. Mas tal como a televisão não havia derrotado o cinema em décadas anteriores, também aqui o grande ecrã acabaria por respirar fundo e sugerir episódios de reencontro não só com as plateias mas com os próprios investidores, capazes de financiar projetos capazes de ultrapassar os patamares de surpresa que telediscos como os que acompanharam Thriller de Michael Jackson (assinado por John Landis) ou The Wild Boys dos Duran Duran (este de Russel Mulcahy) entretanto haviam alcançado, ambos nascidos de evidentes orçamentos nada meigos. Curiosamente coube a David Bowie surgir em dois dos musicais pop dos anos 80. Num deles assinou várias canções e assumiu um papel de maior destaque no elenco, partilhando então a aventura fantástica de Labirinto sobretudo com bonecos criados por Frank Oz. Nesse mesmo ano (o de 1986) vimo-lo num papel menos destacado, mas com uma presença não menos evidente, em Absolute Beginers (estreado entre nós como Absolutamente Principiantes), filme que chamou à cadeira da realização um nome que então era já um aclamado autor de… telediscos. Sinais dos tempos, portanto.

O ponto de partida foi um livro. Tem por título precisamente Absolute Beginers e é o segundo volume de uma trilogia londrina que Colin MacInnes publicou entre 1958 e 1960. A ação decorre na Londres dos anos 50, com focos ora apontados à cor e festa de diversidade que habitava o Soho, ora a um bairro periférico sobretudo habitado por emigrantes e que atrai tanto a ganância de investidores do imobiliário como de nacionalistas xenófobos que rapidamente transformam o ódio das palavras em violência real. Com ressonâncias, portanto, com os tempos que vivemos, Absolute Beginers é filme a (re)descobrir até porque, talvez por de não ter alcançado os objetivos de bilheteira, acabou quase esquecido com o passar do tempo, na verdade raramente sendo lembrado para além da canção-título, que representou um dos maiores êxitos de Bowie nos anos 80.

Mas não foi só na bilheteira que Absolute Beginers ficou aquém do que poderia ter acontecido. Houve conflitos entre a produção e o realizador. E a crítica, convenhamos, não ajudou… Felizmente o tempo ajuda a sarar alguns problemas… E reencontrar Absolute Beginers quase 35 anos depois está longe de ser uma má experiência. E porquê? É que mesmo não sendo este um candidato a figurar numa lista de filmes musicais mais marcantes, não deixa de conter elementos e momentos que justificam que não o deixemos esquecido na memória do tempo. Em primeiro lugar a cenografia e a direção de fotografia, que fazem sobretudo das sequências de exteriores no Soho (todas elas filmadas em estúdio) um festim de formas luz e cor como, e apesar dos orçamentos milionários, nenhum teledisco de então o poderia ter feito. Já a sequência que recria uma casa entre cujas divisões caminhamos sob um olhar exterior em jeito de casa de bonecas (como o faria depois Wes Anderson), é puro deleite de fantasia ao estilo “clássico” do teatro musical. Depois o elenco, onde se destacam não só uma jovem Patsy Kensit (a viver os seus momentos de fama), mas também Ray Davis ou David Bowie, que veste a pele de um investidor sem escrúpulos (e que nos dá ao som de That’s Motivation uma das sequências mais “clássicas” de todo o filme). E depois a música, numa banda sonora que envolve (nas imagens), Bowie e Sade, mas junta ainda Style Council e outros mimos a uma seleção no mínimo brilhante… A isto podemos juntar ainda o contexto político e social que a trama atravessa (e que sobre ela chega a agir), mostrando assim o filme ser potencialmente mais interventivo do que muitas das criações em que o cinema dos anos 50 ou 60 chamou estrelas pop/rock para os seus filmes.

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