Uma coleção de memórias que vão de uma colaboração histórica com Derek Jarman até ao presente surgem em “Film Music 1976-2020”, onde passa música de filmes de realizadores como David Lynch, Michael Mann ou Michelangelo Antonioni. Texto: Nuno Galopim

O trabalho de Brian Eno para o cinema é tão presente na sua obra que chega mesmo a anteceder a própria estreia em disco dos Roxy Music (onde militou). Em 1970, dois anos antes de “Virginia Plain”, assinou música para a curta experimental “Berlin Horse”, de Malcolm Le Grice. Coube, contudo, ao álbum “Music For Films”, editado em 1978, uma mais evidente vontade do músico em aprofundar (e ampliar) a sua colaboração com o cinema (e a televisão), sugerindo aí uma série de visões instrumentais para filmes inexistentes que, eventualmente, poderiam depois encontrar imagens, projetos, realizadores. Por essa altura tinha já criado música para os filmes de 1976 “Land of The Minotaur” do grego Kostas Karagiannis e “Sebastianne”, primeira longa-metragem de Derek Jarman. E o tema “Final Sunset”, criado para a sequência final do filme de Jarman, correspondia de resto a uma exceção entre o alinhamento de “Music For Films” já que, se as restantes faixas correspondiam a ideias de música ainda à espera de cinema, este tema, que encerrava o disco, tinha já integrado uma banda sonora para a qual, de resto, Eno tinha assinado outras mais peças. Momento marcante, portanto, não apenas pelo facto de representar uma das primeiras peças criadas para cinema que Eno levou a disco, mas ainda por ter representando uma primeira parceria com Jarman, com quem outras mais colaborações nasceram até ao momento em que o realizador nos deixou, “Final Sunset” (que não esconde as demandas ambientais que Brian Eno conduzia desde o ‘eureka’ achado em “Discret Music”) é a mais antiga das memórias recuperadas em “Film Music 1976-2020”, uma compilação que, mesmo longe de abarcar a dimensão do relacionamento do músico com as imagens em movimento, representa a primeira grande sistematização (em disco) desta face do seu trabalho.
Num alinhamento que não pretende definir uma cronologia, mas que de facto atravessa várias etapas e projetos, cruzando tanto o trabalho destinado ao grande ecrã como o que Brian Eno assinou para televisão, “Film Music 1976-2020” é uma viagem cheia de sons que, mesmo sem o nosso eventual conhecimento das imagens associadas a cada peça, não deixa nunca de nos sugerir espaços, cores, formas, movimentos. No fundo, a ideia de uma música que “pede” imagens, tal como a que gravou e editou no volume inicial de “Music For Films”, acabou por definir um paradigma que, mesmo perante a diversidade de caminhos depois seguidos, se mantém ainda bem firme. A ideia de música para filmes inexistentes voltou a cruzar-se com Eno em outros projetos, um deles criado nos anos 90 em parceria com os U2 e editado então em disco sob o nome Passengers. E desse disco está aqui “Beach Sequence”, que seria usado por Antonioni (e Wim Wenders) em “Para Além das Nuvens”.
Esta compilação recupera alguns “clássicos” como o “Prophecy Theme” do “Dune” de David Lynch ou “Ascent (an Ending)”, este criado para o documentário “For All Mankind”, de Al Reinert, e editado em disco em “Apollo (Monuments and Soundtracks”, álbum ao qual Danny Boyle foi buscar “Deep Blue Day”, que usou em “Trainspotting”. Também com uma história que passa por diversos projetos está aqui “Under”, uma canção inicialmente destinada ao álbum “My Squelchy Life” (que ficou inicialmente na gaveta e levou anos a ser editado) e que depois não só surgiu na banda sonora de “Cool World” (1992) de Ralph Bakshi, como depois encontrou outra casa em “Another Day on Earth”, álbum editado no ano 2005. Do filme “Heat – Cidade Son Pressão”, de Michael Mann, ouvimos “Late Evening in Jersey” e de “Viuva… Mas Não Muito”, de Jonathan Demme, temos nesta compilação o tema “You Don’t Miss Your Water”. Mas além destes momentos já com alguma familiaridade, há aqui fragmentos da música criada para filmes de Peter Jackson, Adam Low, Henrique Goldman, ou para TV (como é o caso da música nascida em 2011 para a série “Top Boy”).
É claro que fica longe de esgotado o mundo de criações de Brian Eno que o cinema já usou, quer em filmes que o chamaram a criar música nova, quer em outros projetos que recuperaram instrumentais ou até mesmo canções dos seus discos. E, assim de repente, lembro-me logo do papel emocional marcante que teve o belo “By This River”, originalmente apresentado no álbum “Before and After Science” (de 1977), teve num momento do filme “O Quarto do Filho” de Nanni Moretti… Ou “From The Begining”, criado para “Terror na Ópera” de Dario Argento… Ou até “Your Blue Room”, editado no álbum dos Passengers, e usado igualmente np último filme de Antonioni. Isto sem esquecer o próprio episódio de estreia no cinema, na colaboração de 1970 com Malcolm Le Grice. Tudo isto para dizer que, se calhar, não seria má ideia fazer um segundo volume desta compilação de música para cinema…
“Film Music 1976-2020”, de Brian Eno, está disponível em 2LP, CD e nas plataformas digitais, numa edição Opal/UMC