Podem as lojas de discos ajudar-nos a formar o gosto?

Programas de autor na rádio, “vozes” que acompanhamos na imprensa porque com elas sentimos afinidades, os concertos, os ambientes, os amigos… Muitos são, de facto, os caminhos e eventuais protagonistas na história da formação do gosto de cada um. Pode uma loja de discos desempenhar igualmente este papel? Pode, sim. E no meu caso aponto três lojas lisboetas que me ajudaram a fazer descobertas para, no fim, encontrar quem era eu nessa coisa a que chamamos o gosto.

         Comecemos pela que ficava mais perto de casa e que, por variadas razões, acabou por ser determinante não apenas no alargar de horizontes e na construção gradual de um gosto, mas que acabou por ter um papel na própria definição de um rumo profissional. Chamava-se VGM (iniciais de Você Gosta de Música) e ficava no Príncipe Real (*). Era uma loja relativamente pequena, com uma visão moderna que habitava um rés-do-chão de um prédio antigo. Havia ali sobretudo música clássica, músicas do mundo e jazz, alguma música popular escolhida dedo (ou a bom ouvido, talvez) e, razão pela qual ali comecei a ir regularmente, uma oferta considerável de música contemporânea. E entendamos aqui a música contemporânea não como a apenas a que nasceu da geração de Stochkausen, Boulez ou Ligeti, mas a que emergia, vibrante, em meados dos oitentas. Lembremo-nos de que não havia Internet, a imprensa musical estava ora centrada nos fenómenos pop/rock ou jazz e na clássica (old school) e a rádio não era muito dada a passar a música de Philip Glass, Steve Reich ou Terry Riley (cenário que de resto me permitiu a começar a trabalhar em rádio, na Antena 2, um pouco mais adiante)… E Philip Glass foi aqui o clique. Tinha visto (na RTP2) um episódio da série “Four American Composers”, realizada por Peter Greenaway, que lhe era dedicada. E por esses dias uma professora do meu departamento (mas que nunca me deu aulas, porque não segui o rumo da sedimentologia, mas sim o da petrografia ígnea – jargões de ex-geólogo) tinha-me emprestado “Songs From Liquid Days”. E aquilo tinha soado a uma revolução. Que música era esta? Nunca a tinha ouvido… Mas identifiquei-me num ápice… Agora, onde aprender mais sobre aquele tal… Philip Glass?

         Calhou poucos dias depois passar à porta da VGM e entrar. Já gostava de discos. Já gostava de lojas de discos… Mas o meu caminho tinha começado com o trolaró mainstream que um miúdo de 12 anos escutaria em 1979 (e convenhamos que crescer em tempo de new wave foi boa escola), maturado depois sobretudo a ouvir rádio (e o “Som da Frente” teve aí um papel determinante, mal imaginando eu que um dia trabalharia com o António Sérgio e o teria como bom amigo). Já ouvia clássica desde pequeno, que era a música mais presente na coleção de discos em casa. Ouvia Stravinsky, Orff, Bruckner, Ravel, Saint Saëns… Tinha até, entre os 4 primeiros CD que tinha comprado, uma “nona” de Beethoven. Entrar numa loja com foco grande na música clássica não era como visitar um planeta desconhecido, portanto. Mas mal entro dou com um “Einstein on The Beach” a olhar para mim… E, com esse, outros discos de Philip Glass. Foi aqui que a loja, ou antes, o lojista, entrou em cena e mudou tudo… Trabalhava ali o Orlando Leite, um melómano informado e entusiasmado. Viu um catraio de 19 anos a olhar para os discos de Philip Glass e perguntou-me se conhecia aqueles outros… E os outros eram Steve Reich, Wim Mertens, Michael Nyman… E um outro que, a ter de escolher um, foi o que acabei por levar… John Adams. A minha primeira compra na VGM foi o “Nixon In China” (o que vemos na imagem, na versão em CD). E ainda hoje “Nixon In China” divide com “Aknathen”, de Philip Glass, o estatuto de ser a minha ópera preferida.

         Com o Orlando Leite e a VGM fui descobrindo uma nova música. A esses nomes, e com a curadoria do Orlando, fui ouvindo outros menos conhecidos desse mesmo universo (Scott Johnsson, Peter DeHavilland), mergulhando em catálogos como os da Wergo ou Nonesuch, aprendendo pistas formadoras ao escutar Stockhausen, Ligeti, Xenakis… Não deixava de ouvir os Smiths, o Bowie, o Prince, os Depeche Mode, os Duran Duran… Mas foram aquelas as músicas que vincaram mais profundamente os alicerces de um gosto… E curiosamente seria esta música a levar-me à rádio (com um primeiro programa meu na Antena 2, em 1989) e… aos jornais. Tinha começado a publicar textos sobre ciência no Expresso, também em 1989, mas foi dois anos depois quem, por ocasião de uma visita à loja, o Orlando me deu um disco para a mão e pediu: “escreve sobre este disco” e traz-me depois o texto… Eleni Karaindrou? Oh diabo! Quem é? Tive de aprender… O certo é que “Music For Films” (editado pela ECM) seria, poucos dias depois, o meu primeiro texto crítico publicado nas páginas do Caderno 3 do “Independente”, jornal para quem o Orlando coordenava a secção de música… Foi há 30 anos… E, uma vez mais, com uma loja de discos (e quem nela trabalhava) a mostrar-se absolutamente determinante na construção de um caminho no gosto… e até mesmo no plano profissional.

         Falei mais acima em duas outras lojas. Uma delas era a Controverso, em pleno Bairro Alto (quase em esquina com o Frágil) e igualmente a curta distância a pé desde minha casa. Era talvez a melhor loja de discos de Lisboa por esses dias. Juntava algumas das músicas que havia na VGM (sobretudo contemporânea e world) mas apostava em espaços mais desafiantes da música popular e em frentes exploratórias que tinham sempre o sabor a descoberta… De discos de Harold Budd a Hector Zazou, a álbuns pop da dupla Devine & Staton ou Bill Pritchard, sob as dicas do Fernando Magalhães (que era crítico de música), do Zé Guedes e da Antónia Rosa, as visitas à Contraverso eram invariavelmente recheadas em boas surpresas. A cave da livraria Bucholz era o terceiro lugar a que me referia. Era um espaço integralmente recheado a discos (sobretudo de música clássica), com um antendimento à moda antiga, informado, educado, prestável. Aprendi muito ali também (havia catálogos e podíamos fazer encomendas). Mahler, Vaughan Williams, Shostakovich, Sibelius… Mais nomes que se juntaram para firmar um gosto. E, tal como nos casos acima, foi uma loja de discos quem me abriu caminhos…

* Se, entretanto, a Livraria da Travessa devolveu já os livros ao Príncipe Real (depois de uma breve passagem da Distopia, que agora mora na Rua de São Bento), a verdade é que os discos ainda ali não regressaram, sobretudo depois do encerramento da Twice, que durante uns tempos deu a Lisboa uma das suas melhores lojas de discos usados e de coleção…

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