A minha relação com os discos começou comigo a brincar com eles quando tinha três anos (e a estragar alguns)

Muitas das nossas relações com as coisas começam pelo simples ato de brincar… E comigo, com os discos, não houve fuga à exceção. Ao contrário do que vi mais tarde em casas de alguns amigos, o gira-discos da família não era coisa sagrada na qual só os pais podiam tocar. Pelo contrário… Dizem-me que, tinha eu três anos, e os discos (e a música) eram já uma das principais (senão mesmo a principal) das fontes de interesse. E dei por mim com autorização para mexer no gira-discos do pai. Era um velho Telefunken, daqueles em modo carro-de-combate, compacto e resistente, que estava encastrado num módulo em madeira expressamente para ele concebido e que ficava junto ao estirador, no escritório (curiosamente estou a escrever este texto precisamente junto ao local onde, há meio século, estava esse gira-discos). O gira-discos tinha uma característica que nunca mais encontrei em nenhum outro. É que, além das velocidades de rotação então mais comuns – 33 1/3 e 45 rpm – havia ainda a possibilidade de fazer uma comutação para 78 rpm (o que não era invulgar) ou ainda para 16 rpm…        Era preciso abrir o tampo do módulo para aceder ao gira-discos. E essa era a parte do processo que implicava ter de pedir ajuda a um crescido.

No mesmo módulo em que vivia o gira-discos havia um velho aparelho de rádio Graetz que ainda hoje tenho. Daqueles grandes, robustos, com caixa de madeira e mais ar lá dentro do que outra coisa qualquer e que servia para ouvir emissões em ondas curtas (tinha até umas etiquetas indicando o ponto de sintonia de algumas estações de rádio, certamente das incómodas para o regime). Algures no escritório, por detrás das portas de correr de um dos velhos armários da Olaio (que ainda aqui estão) havia ainda um gravador de bobinas, também da Telefunken mas que, na altura, não me cativava com a mesma atenção (salvo uma luzinha verde no canto inferior direito que de acendia mal se ligava à corrente). Era supostamente um aparelho portátil apesar de, tal como o gira-discos, parecer coisa que podia levar com o desabamento de um edifício em cima e resistir à coisa. Coisas dos tempos em que estas máquinas não se faziam com os materiais mais baratos que depois tomaram conta da massificação da produção de grande parte dos equipamentos.

            O gaiato de três anos (ou seja, eu) tinha autorização para mexer no gira-discos… Tirava os LP e os EPs das respetivas prateleiras e, com aqueles gestos menos controlados característicos daquela fase de desenvolvimento de um corpo, elevava-me em bicos dos pés e lá colocava o disco no prato… Se fosse um 45 rotações juntava aquela peça para se ajustar à abertura interior dos discos. A essa peça chamava então a “tampinha”. Depois pegava no braço – que tinha também direito a diminutivo… “o bracinho” – e lá avançava sobre o disco, numa manobra mais parecida com um scratch do que com o gesto pais preciso que o tempo ensinaria a fazer… Muitos riscos ali nasceram naqueles discos… (mas ainda tocam, que os tenho comigo).

            E que música ouvia? Ouvia a música que havia em casa. E essa, em 1970, era sobretudo clássica ou canção francesa. Havia Carl Orff (e já lá regressaremos), Stravinsky, Bruckner, Ravel, Dvorák, Handel (tocado no órgão de Notre Dame), música de câmara barroca ou uma gravação da “Nona” de Beethoven dirigida por Otto Klemperer, que ocupava dois LPs… Havia a banda sonora da “Música no Coração”. E depois havia Gilbert Bécaud, Jacques Brel, Barbara, Mireille Mathieu, a Soeur Sourire ou Benito Merlino, um cantor de origem siciliana que era vizinho dos meus pais nos anos em que viveram em Paris. Se fosse a casa da minha tia Teresa pegava no gira-discos portátil da minha prima e aí ouvia os Beatles, Donovan, Sandie Shaw. Ou pedia pelos discos de Amália da tia. Ficava fascinado com casas cheias de discos. Ainda hoje guardo a memória de uma visita à casa do Professor Orlando Ribeiro, em Vale de Lobos, com uma sala literalmente cheia de LPs (creio que muitos deles caixas de óperas em vinil)… O meu padrinho tinha uma vasta coleção de discos, sobretudo de música clássica e de músicas do mundo. E pedia-lhe sempre para tocar um álbum com música dos Andes… Foram todos estes os primeiros discos que escutei… E convenhamos que lançaram pistas de um gosto. Somos o que escutamos…

            Mas esta banda sonora era sobretudo o som para um filme que fazia da escuta de discos um espaço de brincadeira. E muitas brincadeiras giravam de facto em torno dos discos… O que nem sempre foi sinónimo de boa saúde para as capas e até mesmo para o vinil. Ao que parece só “Carminas Buranas” de Carl Orff, estraguei três. Sim, estraguei. É que, se por um lado ouvia a música (e ainda sei a obra de cor) e com ela criava narrativas, atribuindo as vozes a personagens do meu mundo real (o avô era a abertura do lado B, por exemplo), por outro de tanto lhes mexer e às vezes arrumar com menos cuidado, alguns discos ficaram intocáveis. Contam-me que um dia levei o LP, dominado pela etiqueta amarela da Deutsche Grammophon, para a cozinha, o deitei no chão e andei por cima dele… É claro que levei um raspanete.

            Usava ainda os discos “reais” quando brincava com gira-discos de… brincar. Isso acontecia quando viajávamos, ou quando não era boa ideia eu estar a invadir o escritório. Não sei se a ideia foi do meu pai ou do meu padrinho, mas com as caixas em que vinham as camisas faziam gira-discos de cartão. A caixa era o bloco, sobre o qual se colocava um prato e um “bracinho” em cartolina, cuja rotação era garantida por tachas que uniam estas peças ao gira-discos… SE estivesse em casa pegava num single ou EP, punha-o a girar com os dedos e inventava a música. Se estivesse de viagem, a criatividade tratava da coisa.

      

      Os ocasionais (e raros) ralhetes – no fundo para afinar a relação com os discos – nunca me impediram de passar horas com os discos… E para que não houvesse dúvidas de quem eram, escrevia (aprendi a escrever por essa altura) os nomes dos respetivos proprietários nas contracapas… Ainda não sabia o que era o “near mint” e outros patamares na escala da avaliação do estado de saúde dos discos, está visto… A assinatura “Nuno”, a dizer que eram meus, chegou finalmente com “Olha a Bola Manel” de José Barata Moura e, já na primavera de 1971, “Pomme Pomme Pomme” de Monique Melsen, a canção do Luxemburgo na Eurovisão desse ano (também me ofereceram o single da canção vencedora mas dessa não gostava tanto). Foi por essa altura que os discos começaram, devagar e discretamente, a migrar para o meu quarto… Contudo, um gira-discos só meu não chegaria antes de 1974… Foi em abril, por alturas da noite em que os Abba venceram a Eurovisão com “Waterloo”, mas curiosamente o single que então pedi aos meus pais foi o que tinha a canção “I See a Star”, de Mouth & McNeal, os representantes da Holanda… Já queria ser alternativo, está visto.

PS. A história do meu primeiro gira-discos fica para outro dia.

Achei na internet imagens do velho gira discos e do leitor de bobines da Telefunken:

Um dira-discos igual ao que tínhamos em casa
Um gravador de bobinas da marca e modelo igual ao nosso
E o rádio era deste modelo

Um pensamento

  1. Obrigado pela partilha a que eu chamaria de viagem. Daquelas que frequentemente fazemos quando assistimos a um bom filme. Calculo que tal aconteça pela capacidade da escrita tão pitoresca quanto sonora! Agora estou a escutar uma da sugestões “I See a Star” de Mouth & MacNeal enquanto percorro as fotografias de material vintage, que delicia os mais nostálgicos como eu.

    Resumindo, este texto dá um belo pôr do sol.
    Abraço

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