Uma edição expandida (tanto em vinil como na caixa com CD e DVD), o álbum de 1988 “The Stars We Are” juntou um alinhamento inspirado a grandes arranjos e a um momento de grande forma vocal. O disco resistiu bem à passagem do tempo. Texto: Nuno Galopim

A vasta obra em disco de Marc Almond passou por inúmeras mutações, experiências e ousadias desde o momento em que, em 1980, surgiram publicamente as primeiras gravações dos Soft Cell. E na hora de ter de escolher “um” disco que represente o melhor de mais de 40 anos de trabalho é natural que entre as escolhas surjam destacados os álbuns Non Stop Erotic Cabaret (1981) ou The Art of Falling Apart (1983) dos Soft Cell, assim como o colossal Torment & Toreros, que editou em 1983 como Marc & The Mambas. Da obra a solo, qualquer dos álbuns que editou entre 1985 e 1991 poderia ser aqui referido (consoante o gosto de quem fizesse a escolha), mas não seria de espantar que, no intervalo definido entre Stories of Johnny (1985) e The Tenement Symphony (1991), o álbum de 1988 The Stars We Are surgisse como o favorito para lugar pelo lugar cimeiro do pódio.
O disco surgiu depois de Mother Fist (1987) ter encerrado um primeiro ciclo de vida a solo. Se desde a aurora dos Soft Cell sempre houvera nas canções de Marc Almond alusões a espaços e expressões da cultura queer, assim como alusões frequentes ao corpo, ao desejo e à noite que transcendiam os códigos mais habituais na canção pop, em Mother Fist as palavras e as imagens tinham ganhou outra nitidez. As palavras, aliadas a uma música mais descarnada, essencialmente acústica, afastaram o disco dos espaços de comunicação mainstream, facto ao qual Almond acabaria por responder cimentando os alicerces de um estatuto de culto. Representando a estreia para uma nova editora (a EMI), o seu quarto álbum a solo procurou, sem alienar essa base, reatar ligações a plateias mais vastas. A solidez da composição, metáforas e narrativas lançadas por caminhos menos fechados nas palavras e significados (sem, contudo, abandonar temáticas e pontos de vista) e uma dimensão mais épica nos arranjos – que serviu magistralmente um momento de grande forma vocal – juntaram-se para aqui fazer nascer um disco notável.
Através de canções pop como Tears Run Rings, Bittersweet, sem perder o flirt com a torch song em Only The Moment, juntando ainda o classicismo de Something’s Gotten Hold of My Heart (melhor na versão original, sem o dueto com Gene Pitney), a dimensão épica do tema título e o apelo cinematográfico de The Sensualist, She Took My Soul in Istambul ou My Kisses Burn (que correspondeu ao derradeiro registo da voz de Nico, aqui em dueto), The Stars We Are é um disco que soube resistir ao tempo que passou. Livre das marcas mais vincadas da produção característica da época, liberto de preocupações em seguir modas ou tendências, feliz no modo de assimilar ecos do passado para com eles definir as bases sobre as quais emerge depois uma identidade, o disco chega a 2021 numa nova edição que junta ao alinhamento do álbum original o conjunto de canções então editadas em lados B dos singles (entre os quais o delicioso Kept Boy, dueto com Agnes Bernelle), assim como uma coleção de remisturas da época. Um DVD acoplado acrescenta a dimensão visual através dos respetivos telediscos.
Criado num pequeno estúdio londrino do qual Marc Almond registaria na sua autobiografia memórias de um cheiro a tabaco e erva que se colava às paredes, The Stars We Are guarda em si várias histórias, da passagem pelo estúdio de Nico à menos feliz tentativa para ali chamar igualmente a diva Yma Sumac (que fora referida na letra de Mother Fist). Trinta e três anos depois o reencontro com estas canções revela um sentido de intemporalidade que de facto habita vários momentos da obra de Marc Almond. Mas aqui com um alinhamento irrepreensível e do qual acabaria até por nascer um êxito global numa versão de Something’s Gotten Hold of My Heart contando em dueto com o dono da voz da leitura de 1967 que a transformara logo então num êxito. Como resultado o disco reatou a relação de Marc Almond com uma comunicação para o grande público que se manteria firme neste mesmo patamar de reconhecimento popular em discos seguintes como Enchanted ou The Tenement Symphony. E nada disso o impediu de criar, ao mesmo tempo, pequenos tesouros de maior ousadia como o foram os álbuns de versões de Jacques Brel ou da chanson francesa. Convenhamos que, de 1985 a 1993, Marc Almond criou e gravou a melhor etapa da sua obra discográfica a solo. Open All Night (1999) voltaria a recuperar o fulgor destes tempos… E na hora de fazer as contas, talvez The Stars We Are seja mesmo um dos melhores momentos desse tempo de grande inspiração (e voz).
“The Stars We Are (Expanded Edition)”, de Marc Almond, está disponível em 2LP e em 2CD + DVD, numa edição da Cherry Red