A música tem muito para nos contar entre os episódios da magnífica série “It’s a Sin”

Disponível na plataforma HBO, a minissérie britânica “It’s a Sin” recorda os tempos em que as infeções pelo VIH ceifaram primeiras vidas no Reino Unido. A banda sonora revela aqui um magnífico trabalho de caracterização dos contextos e da época. Texto: Nuno Galopim

A utilização de música numa série ou filme pode ir muito para além dos mais frequentes momentos em que se pretende sublinhar de uma carga emocional (como o faz o Cambodia de Kim Wilde em Em Paris de Christophe Honoré) ou a (não invulgar) opção por recorrer, através de uma canção popular, a um mecanismo de reconhecimento que gere familiaridade ou empatia… Nada contra qualquer destes caminhos, note-se. Mas como espectador invariavelmente atento à música que escuto em filmes e produções para televisão (é um defeito de fabrico meu, sim) gosto de procurar algo mais nas escolhas musicais. A excelência da banda sonora feita da reunião de canções pré-existentes que habitualmente encontramos no cinema de um Quentin Tarantino ou o apelo gourmet das seleções que escutamos em filmes como Até ao Fim do Mundo de Wim Wenders ou Quem me Amar Irá de Comboio, de Patrice Chéreau, são.  belos exemplos de experiências cinematográficas que aliam o sabor da cinefilia a um saboroso relacionamento com a música. Mas no seu magnífico Era Uma Vez em Hollywood, Tarantino (e quem com ele selecionou a música) usaram as canções com um outro objetivo mais: a música fazia parte da relação da cenografia com o próprio contexto em que se desenrola a narrativa. Ou seja, ali a música tem uma carga num patamar semelhante ao da direção artística. A música tem algo a dizer-nos. É um elemento caracterizador complementar para o que vemos e a história que nos é contada. Não faltam bons exemplos desta mesma ideia em ficção televisiva. E nos últimos anos vimos vários exemplos de séries em que a música foi escolhida a rigor (e bom gosto). Séries como Deutschland 1983 (e a sequela passada em 1986) ou a portuguesa 1986 são belos casos de como a música pode ajudar a vincar não só a caracterização das personagens e dos ambientes mas o próprio contexto de época. E é precisamente nesse mesmo domínio que a minissérie It’s a Sin (disponível na HBO) tem um dos seus vários trunfos.

            Criada por Russel T. Davies, o mesmo autor de Queer as Folk, mas deixando felizmente de lado a costela meio telenovela dessa outra série dos tempos da viragem do milénio, It’s a Sin decorre num arco de tempo definido entre 1981 e 1991, acompanhando um grupo de personagens num tempo em que começa a ser falada uma estranha doença identificada entre homens gay em Nova Iorque, acompanhando depois o cenário dramático (ou talvez, antes, trágico) que assistiu à eclosão de cada vez mais casos em Londres (o foco geográfico da ação). Além de um núcleo de personagens magnificamente bem desenhadas e interpretadas (com Ollie Alexander, vocalista dos Years & Years a vestir a pele do protagonista) e da apresentação de uma narrativa que evolui num contexto que envolve preconceito, homofobia, culpa, medo e muita solidão, num contraste abissal entre a euforia otimista que todos vivem no primeiro episódio e momentos de dor maior que se vão instalando, os cinco episódios de It’s a Sin definem também uma viagem no tempo entre os pontos de partida e chegada. Cada episódio decorre num ano em específico (1981, 1983, 1986, 1988 e 1991), mostrando cada qual uma banda sonora que vinca o tempo em questão. E as escolhas aí tanto ilustram momentos de utilização diegética das canções (sobretudo em cenas passadas em bares e discotecas) como servem de pontuação cénica, tão correta no desenho de um retrato de época quanto o guarda roupa ou outros elementos da direção artística.

      O arco de tempo definido pela série revista por um lado clássicos da pop daquele mesmo intervalo – de Enola Gay dos OMD, Call Me dos Blondie, Kids in America de Kim Wilde ou Tainted Love dos Soft Cell a Freedom dos Wham!, Karma Chameleon dos Culture Club, Running Up That Hill de Kate Bush ou The Only Way is Up de Yazz – como desenha sobretudo um percurso através de canções que tiveram vida marcante na cultura noturna queer dos oitentas, recordando aí temas como Feels Like I’m In Love de Kelly Marie, Smalltown Boy dos Bronski Beat, Whatever I Do Wherever I Go de Hazell Dean, Do You Wanna Funk de Sylvester (com música de Patrick Cowley) ou You Think You’re a Man de Divine… Detalhe curioso, o recurso a um dos momentos de Hooked on Classics (um fenómeno de popularidade no inícios dos 80s) no primeiro episódio. Vale a pena notar que entre as escolhas da banda sonora passam memórias de figuras que a doença levou cedo demais, de Patrick Cowley ou Sylvester a Freddie Mercury (de quem se escuta Who Wants to Live Forever dos Queen). A memória de It’s a Sin, dos Pet Shop Boys, naturalmente paira sobre nós ao longo de toda a série, ganhando a canção vida numa cena de pub. No final do último episódio os créditos rolam ao som de Everybody Hurts dos R.E.M., na verdade uma canção já de 1992. O que assim nos diz que o tempo continuou… Mas ninguém vai esquecer aquelas vidas e aquilo porque passaram. E essa carga fica connosco… E acho que daqui em diante acrescenta sentidos e memórias a algumas destas canções. É esse também um dos poderes da música: o de transportar memórias de figuras, tempos e lugares. Mesmo que associados a uma trama de ficção.

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