Um primeiro gira-discos foi a minha outra revolução em abril de 74

Fui operado aos olhos a 5 de abril de 1974. Tinha seis anos e lembro-me do dia porque, na noite seguinte, a RTP transmitiu a edição desse ano do Festival da Eurovisão, aquele que consagrou os Abba. Mas nesse ano não vi o programa, já apenas o pude escutar, uma vez que tinha ainda os olhos vendados (e a coisa durou ainda mais uma semana). Acontece que era importante saber o que se passava. Ouvia as músicas, claro… Mas o que estava a acontecer?… E lá tive um comentador particular, o meu pai, que me ia descrevendo, ao detalhe (que eu já era chato) o que se ia passando no palco do Brighton Dome. E apesar de “Waterloo” não ter sido a minha canção preferida dessa noite, a “imagem” descrita que mais fixei foi a do maestro, que ao que parece, ia de chapéu à Napoleão! Imagem que guardei sugerida anos a fio até que, largos anos depois, finalmente me deram a ver uma gravação do programa numa cassete de vídeo (e por essa altura a canção desse ano de que mais gostava era a italiana…).

Essa Eurovisão descrita a rigor não é a única memória que guardo da convalescença da operação aos olhos. Chegado a casa, ainda combalido, recebi uma coleção de cassetes que o meu padrinho tinha expressamente gravado para eu poder escutar por aqueles dias (a elas regressaremos), manipulando eu mesmo o pequeno leitor. Mas mal cheguei ao quarto fizeram-me saber que tinha outro presente à minha espera: um gira-discos. O meu primeiro gira-discos.

Era um portátil, modelo PG-R8 da Sanyo, com estrutura em plástico a branco e o tampo (também de plástico) a vermelho. Tinha um prato que rodava a 33 e 45 rotações e um altifalante diretamente instalado sob o braço. De frente o aparelho mostrava um cursor para o volume. Na verdade, o PG-R8 tinha também um rádio instalado, mas nem me recordo de sequer usar essa possibilidade. O que eu que eu queria mesmo era ouvir os discos. É claro que o Telefunken, no escritório, tinha muito melhor som. Mas com aquele Sanyo podia finalmente ouvir os discos no meu quarto… E a primeira prateleira com discos em vinil começou a ganhar ali forma. Na estante por cima da mesa de cabeceira, onde desde logo ficou decidido que era o lugar do gira-discos.

Por essa altura tinha essencialmente singles e EPs. Havia singles com canções da Eurovisão: Luxemburgo 1971, 1972 e 1973 e Mónaco 1971. E brevemente chegaria a Holanda 1974… Havia histórias contadas, quer as da série da “Estorinhas da Disney” (em edições brasileiras da Abril Cultural, com livro incluído), quer umas lançadas pela Alvorada (lembro-me de “O Macaco do Rabo Cortado”). De José Barata Moura, tinha já o “Olha a Bola Manel”. Para ouvir ao deitar, o “São Horas Meninos”, da Família Pituxa. E a estes discos juntei os que, ainda antes da revolução, fui “nacionalizando” aos meus pais: os 45 rotações de Jaques Brel, Barbara, Alain Barrière, Nana Mouskouri, Benito Merlino, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, um single com música do filme “O Passageiro da Chuva”, um LP de Gilbert Bécaud gravado ao vivo no Olympia ou alguns outros de música clássica… E, claro, os discos do meu tio (o cantor romântico Francisco José, de apelido Galopim de Carvalho). Ainda sem uma vivência pop (que na verdade só nasceria depois de chegado ao liceu, no final dos setentas), tinha entre as primeiros discos que escutava algumas bandas de catraios. Os espanhóis A Pandilha (e deles tinha já quatro singles e EPs, entre eles “A Pandilha em Português”), os franceses Poppys e os portugueses Mini Pop, o grupo dos “manos” Barreiros. E convenhamos que havia ali mais criatividade e ousadia do que na febre das versões fáceis à Ministars de gerações seguintes… Aquelas bandas de gaiatos gravavam originais.

Com um gira-discos no quarto o hábito de comprar singles e LPs (na verdade era mais pedir para que mos comprassem) aumentou, claro… E nos dois anos seguintes lembro-me que recebi o LP com as canções do “Fungagá da Bicharada” e o EP da “Joana Come a Papa”, um EP da Deutsche Grammophon com uma gravação de “Eine Kleine Nachtmusik” de Mozart (com uma foto de Salzburgo na capa), o single com a canção-título da série “Sandokan” ou outro com “If I Were a Rich Man” do filme “Um Violino no Telhado”.  O “álbum vermelho” dos Beatles, oferecido ao meu pai, seguiu o caminho das nacionalizações (a seu tempo descobriria que gostava mais do azul). O mesmo acontecendo com discos dos Abba…

O meu gira-discos não era na verdade o que sonhava ter. E esse era um igual ao Philipps azul portátil, que fechado parecia uma pequena mala, que a Tia Elisa, a professora de música no colégio, levava para as aulas para escutarmos discos. Mas aquele era o meu gira-discos! E como tanto tinha alimentação por cabo ligado à corrente como funcionava com pilhas, o pequeno gira-discos (que também parecia uma malinha) ia para onde quer que eu fosse. Fossem os fins de semana na casa de Sintra, as férias com os avós em Évora ou no Algarve ou passeios com destinos, a mala do carro tinha de guardar sempre um espaço para o gira-discos, levando eu comigo, no banco de trás, uma caixa com os discos, que assim viajava ali sentada entre o meu lugar e o do meu irmão. Se calhar nasceu aí o hábito de viajar com discos… Se é verdade que quando vou a algum lugar raramente parto com discos nas mãos, invariavelmente regresso com uns sacos cheios deles, que viajam sempre sentados ao meu lado…

Eu e o Rui em abril de 74 (entre revoluções), e já com o gira-discos

Ainda não tinha descoberto a rádio. Tirando o Festival da Canção e a Eurovisão pouca música mais ouvia então na televisão. A descoberta de novos discos fazia no crescente hábito de ir às lojas, acompanhado pela minha mãe, pedindo-lhe este ou aquele. Mesmo com uma pré-história de audições que vinha de 1970 (e dos primeiros discos que estraguei), foi ao ter um primeiro gira-discos que ganhei o gosto de ir regularmente a lojas de discos… Ou seja, para mim, houve uma segunda revolução em abril de 1974. E esta, mais pessoal, aconteceu uns dias antes da outra que mudaria a nossa história coletiva.

Um Sanyo PG-R8 vermelho, como o que tive em abril de 74
Um gira-discos igual ao que usávamos nas aulas de música

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