
Há discos que nos marcam e transformam. Discos que ora abrem portas para descobertas ou vincam caminhos já em curso. Todos nós temos aquele ou aqueles discos que nos transformaram, que nos ajudaram a definir um caminho mais focado para o gosto… Eu cresci com os discos dos meus pais e com o que se ouvia na rádio. Brel, Bécaud, Barbara, Abba, Carl Orff, Bruckner, Stravinsky, Beethoven, José Mário Branco (a Ronda do Soldadinho, sobretudo, era presença habitual em casa), Sérgio Godinho, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho… Muito cedo juntei a Eurovisão. Mais a Amália que ouvia em casa da Tia Teresa e os Beatles (da minha prima). O universo pop/rock na verdade só entra em cena em 1979, quando chego ao Liceu Pedro Nunes e vejo os meus colegas a falar sobre os discos. E de dos AC/DC não achava graça nenhuma, já de Lene Lovich ou dos Madness a coisa parecia bem mais interessante… Na pop, e depois dos Abba (em casa), comecei pela new wave. Já gostava de música eletrónica. Lembro-me de ouvir na rádio (em meados dos anos 70) o Radio Activity dos Kraftwerk sem saber, na altura o que seria… Na viragem dos 70 para os 80 viviam-se dias de emergência dos sons dos sintetizadores entre as novas canções que escutava na rádio. Buggles, Human League, Soft Cell, Depeche Mode, os próprios Duran Duran… As eletrónicas estavam claramente na linha da frente dos apetites e dominaram primeiras compras de discos, entre as quais estavam ainda nomes como os Visage, OMD ou Heaven 17. Mas o mergulho mais profundo nesses domínios, que abriu depois caminho a querer conhecer mais nomes e mais discos, chegou na forma de uma revelação feita uma noite, em casa, em 1982, em frente à televisão.
A RTP passava um documentário sobre os Concertos na China de Jean Michel Jarre. Estávamos na sala eu, o meu irmão e os meus pais. Fiquei absolutamente concentrado no que via e ouvia. Um músico francês estava em Pequim, depois em Xangai, apresentando uma música essencialmente criada por sintetizadores, ocasionalmente estabelecendo um diálogo com uma orquestra chinesa. O público, que assistia na plateia das salas de concertos, tinha um olhar de surpresa que talvez não fosse muito diferente daquele que, sob o desafio da descoberta (da música e da China) com que eu estaria a olhar para a televisão.
No sábado seguinte fui tentar comprar o disco. No início dos 80s, aos sábados de manhã ia (sempre) à Baixa. E aí visitava (sempre), e por esta ordem, as secções de discos das lojas Novo Figurino, Eduardo Martins, Grandella e Armazéns do Chiado. E, claro, a Valentim de Carvalho, a Sassetti, a Melodia e a Discoteca do Carmo. Aos dias de semana, havendo “furos”, tinha a Compasso (relativamente perto do Liceu Pedro Nunes, onde andava). Procurei em todas as lojas, mas o disco com os Concertos na China tinha esgotado! Era um duplo, explicaram-me… E então gastei as poupanças que tinha e, de uma só vez, levei para casa os três álbuns de Jean Michel Jarre que encontrei. No Novo Figurino, que foi a última paragem dessa manhã. E assim, “marcharam” Oxygene, Equinoxe e Les Chants Magnetiques, ou seja, os discos de Jean Michel Jarre imediatamente anteriores à digressão chinesa. Algum tempo depois lá achei o disco ao vivo na China (o tal LP duplo com o título em português). Ainda o tenho e está impecável.

Tal como o “momento” Jean Michel Jarre, há um outro disco que entrou na minha vida num dia específico e que me marcou de forma ainda mais intensa. E esse mudou mesmo a minha vida porque, daí em diante, algo mais importante do que o curso que estava a tirar apareceu no meu horizonte. Estava já na faculdade a estudar geologia quando a Teresa Azevedo, uma professora do departamento (mas que curiosamente nunca me deu aulas), me emprestou um disco. Bom vale a pena dizer aqui que conhecia os professores quase todos do departamento de Geologia desde catraio (afinal eram colegas do meu pai). Sabendo que eu gostava de música, a Teresa emprestou-me Songs From Liquid Days, um ciclo de canções no qual Philip Glass colaborava com nomes como os de David Byrne, Laurie Anderson, Suzanne Vega ou Paul Simon… Como se não bastasse, por aqueles dias a RTP2 apresentou o episódio dedicado a Philip Glass de uma série sobre compositores americanos realizada por Peter Greenaway… Coincidências incríveis, não? Se de tarde tinha ficado encantado com Songs From Liquid Days (que ainda hoje é o meu disco favorito), de noite descobri desafios maiores com excertos de Glassworks e da ópera Einstein on The Beach… Havia aqui perto de casa, no Príncipe Real, uma loja de discos chamada VGM… Foi lá que comecei a comprar discos de Philip Glass. Mas também de Steve Reich, Terry Riley, John Adams, Wim Mertens, Michael Nyman… Essa música passou a ser a que mais me motivava a querer saber ainda mais… E, no fundo, aquele dia ao som de Philip Glass esteve na origem da mudança de rumo profissional que evitou que fosse um geólogo à espera do ordenado para ir comprar discos.

Mas não há dois sem três. E terceiro disco deste trio ajudaria a aprofundar esma mesma relação com a música eletrónica e a contemporânea. Em 1989 acompanhei o meu pai a uma reunião com o diretor da RDP. O objetivo era o de se encontrar espaços na programação das rádios para que se falasse da necessidade de lutar pela defesa do património geológico em Portugal… Todos temos uma dose tremenda de “lata” aos 21 anos, e passei a reunião a questionar o diretor sobre o porquê da ausência na programação da Antena 2 de alguma música que então ouvia em casa. E lá veio o rol do costume… O Glass, o Reich, o Riley, o Mertens, etc… Vai daí o diretor pergunta-me “então porque não vem cá fazer um programa sobre isso”?… Não sei se ele estaria a brincar com o gaiato (ou seja, eu) ou se a falar mesmo a sério. Nunca lhe perguntei… Mas no dia seguinte, ao chegar ao Quelhas, já o diretor lá tinha (entregue por mim bem cedo) um projeto para um programa em 12 episódios sobre os minimalistas. Chamei-lhe Música em 12 Partes… Quem conhece a obra de Glass vai perceber a piada… Fui chamado, atribuíram-me um realizador (o veterano Bernardino Pontes) e deram-me autorização para consultar a discoteca da RDP… Era preciso estudar o tema para escrever os guiões. E na rua encontrei, por acaso, o Jorge Lima Barreto, que morava perto de mim, e logo me deu as provas de um livro sobre música minimal repetitiva que ia lançar daí a algum tempo. As referências ali arrumadas ajudaram a estruturar ideias. Fui depois para a discoteca da rádio encontrar a música daqueles nomes ali referidos… O que adorei descobrir aquelas salas cheias de armários atulhados de discos, as fichas que os identificavam, as pessoas que lá trabalhavam e rapidamente adotaram o gaiato que ali passou a ir todos os dias… E há um momento de epifania quando escuto o Hymnen do Stockhausen… Frequências de rádio, gravações de hinos, manipulações eletrónicas… Uma vez mais era uma música que desafiava coordenadas e abria espaço para novas investidas no (ainda) desconhecido. Levei anos a encontrar um Hymnen para ter em casa. Houve tempos em que era tão difícil de achar que custava um dinheirão. Mas já o tenho em vinil. Assim como na versão em 4CD que o próprio Stockhausen depois lançou na sua própria editora. E de Stockhausen parti para descobrir Ligeti, Xenakis, Henze, Messiaen ou Varèse, entre outros mais vultos da música do século XX.

Os discos ajudam-nos a ser quem somos. E por muito diferentes entre si que possam parecer, os momentos da descoberta de Os Concertos na China de Jean Michel Jarre, de Songs From Liquid Days de Philip Glass e Hymnen de Karlheinz Stockhausen fazem parte de uma mesma viagem feita de revelações e entusiasmos que talharam um gosto… A culpa é destes três discos, portanto! E ainda bem. O primeiro comprei-o ainda em 1982, o segundo logo depois de o escutar, em 1986… Já o terceiro andou sob a minha mira até que, há uns anos, achei um exemplar em bom estado e a um preço decente no eBay (pelo caminho tinha já comprado na Dussman, em Berlim, a versão em 4CD da Stockhausen Verlag).
Bonito!
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