Nas entranhas da criação de um álbum que fez história

Quarto volume de uma série de discos de maquetes, “Stories of The City, Stories of The Sea – Demos” revela primeiros esboços de canções de um álbum no qual PJ Harvey começou a procurar uma nova dimensão cenográfica para a sua música. Texto: Nuno Galopim

Quantas vezes nos é dada a possibilidade de mergulhar nas entranhas do processo criativo que corresponde à criação de um álbum. Com PJ Harvey a resposta a esta questão é um número em constante mutação. Na verdade ela mesmo fez da gravação do seu mais recente álbum – The Hope Six Demolition Project (2016) – uma experiência partilhada, criando um estúdio numa sala da Somerset House, em Londres, convidando os visitantes a passar em frente a uma janela com vista sobre os trabalhos em curso. Sob uma lógica necessariamente diferente, mas no fundo vincando essa mesma vontade e partilhar episódios do que foi um work in progress antes da fixação final do disco que depois chegou às lojas, a série de lançamentos em curso, que acompanham a reedição dos títulos da sua discografia com o lançamento (inédito) de um disco com maquetes de todas as canções do respetivo álbum, está a construir um arco de memórias de canções que, assim, conhecemos antes das formas finais a que nos habituámos. A série arrancou em julho de 2020 com Dry – Demos, as maquetes das canções do seu álbum de estreia, lançado em 1992 e que, na ocasião, conhecia igualmente uma reedição no formato de LP. Desde então surgiram já discos com as maquetes dos álbuns To Bring You My Love e Is This Desire?, apresentando-se agora, como quarto lançamento desta série, Stories of The City, Stories of The Sea – Demos, que nos convidam a descobrir as vidas anteriores das canções desse álbum tão marcante, originalmente editado no ano 2000.

            Mais do que apenas “um disco sobre” vivências e imagens de Nova Iorque”, ideia que a própria PJ Harvey procurou desmontar, este foi um álbum nascido depois de uma residência de alguns meses na Big Apple (o que por sua vez foi consequência de uma experiência no cinema com Hal Hartley). Ecos de uma cidade mais cheia de vidas talvez tenham, contudo, motivado não apenas as palavras e cenários, mas também, musicalmente, a procura de caminhos diferentes do minimalismo mais evidente de discos anteriores, assim como dos tons mais densos e tensos que habitavam as canções que antes já nos dera a escutar. Mais cor, mais acontecimentos, uma relação diferente com o apelo da melodia e o desafio à presença de uma outra voz – em concreto a de Thom Yorke – fizeram de Stories of The City, Stories of The Sea um disco aberto a novas experiências o que teve entre as suas consequências um apelo de sedução que chamou novos públicos à música de PJ Harvey (sem, contudo, alienar os que já a seguiam atentamente) e lhe deu uma vitória no Mercury Prize.

            Na hora de agora escutarmos as maquetes das canções reconhecemos aqui os sinais de busca de caminhos na composição, mas ainda sem a dimensão cenográfica que os arranjos e a produção (da própria PH Harvey, Rob Ellis e Mick Harvey) depois iriam conferir às suas versões finais. Se o álbum original nasceu da assimilações de meses de vida do que era Nova Iorque quase em vésperas do 11 de setembro de 2001, num confronto com um labor de estúdio vivido em cenário completamente diferente, em Dorset – junto ao mar, daí a dupla referência no título do disco –, as maquetes sugerem como os lugares e vivências começam a ganhar forma nas palavras e melodias antes de, pela cenografia desenhada em estúdio, as canções ganharem formas, cores e respirações que mais claramente nos façam ouvir o que nos têm para contar. A sós, até mesmo em This Mess We’re In – da qual nasceria depois o dueto com Thom Yorke -, PJ Harvey lança aqui os primeiros esboços para um álbum que, mais até do que o anterior To Bring You My Love, vinca o gosto em assumir o estúdio como ferramenta criativa e não mero espaço de gravação.

“Stories of The City, Stories of The Sea – Demos”, de PJ Harvey, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais numa edição da Universal.

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