Podemos ouvi-lo todas as manhãs na Rádio Comercial. E vê-lo uma vez por semana no “Traz Para a Frente” na RTP Memória… E não só… E hoje o Nuno Markl fala-nos dos discos que tem em casa.

Qual foi o primeiro disco que compraste?
O primeiro, mesmo com dinheiro meu, de ordenado, foi o CD de Little Creatures, dos Talking Heads. Comprei-o antes de ter dinheiro para comprar um leitor de CD, por isso, como fazia madrugadas no Correio da Manhã Rádio, comprei-o na Strauss das Amoreiras, juntamente com uma cassette virgem, fui para o CMR fazer o meu turno da noite e pus a gravar o disco na cassete, esperando que num dos próximos meses já pudesse investir no leitor de CD. E assim foi!
E o mais recente…
O vinil do Father of the Bride dos Vampire Weekend. Antes disso, uma catrefada de vinis clássicos num feirante de Londres. Coisas que iam desde o Paralel Lines dos Blondie até ao Songs From The Big Chair, dos Tears For Fears. Tudo ao preço da chamada uva mijona. Confiei no vendedor, que me disse que estavam todos impecáveis – e é verdade.
O que procuras juntar mais na tua coleção?
Neste momento ando a tentar juntar os vinis de discos realmente importantes para mim aos quais, por uma razão ou outra, perdi o rasto. Ou que nunca tive em vinil. E sempre que sai uma daquelas edições de coleccionador do Prince, lá vou eu. As reedições de Purple Rain e o Sign O’The Times estão monumentais.
Um disco pelo qual estejas à procura há já algum tempo.
Hoje em dia perdeu-se um bocado a mística da caçada, porque está quase tudo disponível na Internet, de uma maneira ou de outra, por raro que seja. Mas o meu lado de eterno reconstrutor do puzzle da minha infância, adoraria deitar as mãos a um disco muito peculiar que nosso Júlio Isidro magicou nos anos 70, de paródia à novela Gabriela, e que incluía um tema chamado Basta, Tonico Bastos que eu adorava quando era pirralho. Creio que vinha com um livro ilustrado, com desenhos do Zé Manel, que fazia algumas das BD da revista Fungagá da Bicharada. Sei que o Júlio o tem, mas não o quero roubar!
Um disco pelo qual esperaste anos até que finalmente o encontraste.
A banda sonora do filme After Hours, do Martin Scorsese, composta pelo grande Howard Shore. Adorei-a no filme, diria que foi a primeira vez – tinha eu uns 15 anos – que me apercebi da tensão que uma boa partitura instrumental pode invocar. O Shore é mais conhecido pelas partituras épicas que fez, por exemplo, para A Mosca ou O Senhor dos Anéis. No After Hours ele usa apenas o tic-tac obsessivo de um relógio e sintetizadores. É tão cool, tão delicado e, ao mesmo tempo, tão inquietante. E divertido, mas mantendo uma grande subtileza. Estive uns bons 30 anos à espera que houvesse uma edição disso. Acabou por sair em 2009 num álbum com outras raridades do Howard Shore, chamado Collector’s Edition Vol 1.
Limite de preço para comprares um disco… Existe? E é quanto?
Bem, paguei 200 e tal euros pela edição de 13 vinis do Sign O’The Times. Talvez esteja aí o meu limite!
Lojas de eleição em Portugal…
Não vou a nenhuma há que tempos. Mas recordo com saudade a Bimotor, nos Restauradores. Também me lembro de, quando morava em Benfica, me dar especial gozo vender e comprar coisas na loja de discos que havia no centro comercial Nevada, ao pé da Igreja de Benfica.
Em viagem lá fora também visitas lojas de discos? Quais recomendas?
Sim, mas não me lembro dos nomes e moradas exactas. Mas já estive em belas lojas em Londres, Madrid e Nova Iorque. Mas, como disse, em Londres adorei a experiência de comprar em mercados de rua. Mas convém analisar bem a superfície do vinil antes de largar lá as libras. Tenho também memórias felizes de passar bastante tempo em templos como a HMV ou a Tower Records, hoje praticamente todas extintas.
Compras discos online?
Sim, várias vezes. Ou mandando vir, ou recorrendo ao formato digital, tipo iTunes.
Que formatos tens representados na coleção?
CD, vinil, iTunes e ainda tenho uma coisa que parecia divinal chamada Super Áudio CD. Tinha um leitor disso, há uns anos, e um sistema de som que lhe fazia justiça. Lembro-me de ficar muito impressionado com uma edição do Avalon, dos Roxy Music, em que, ao fechar os olhos, conseguíamos “ver” o Bryan Ferry no centro e os restantes instrumentos espalhados pela sala. Era uma experiência. Mas não vingou…
Os artistas de quem mais discos tens?
Talvez aqui seja um empate entre os Talking Heads, Prince e Bowie.
Editoras cujos discos tenhas comprado mesmo sem conhecer os artistas…
Tive a minha fase 4AD, em que parecia que tudo o que dali vinha era transcendente. E se calhar era mesmo. A Rough Trade também tendia a dar sempre alegrias a uma pessoa. E cá, mais recentemente, a Flor Caveira. Adoro as coisas que o Tiago Cavaco deu a conhecer ao mundo.
Uma capa preferida
É um bocado cliché, mas não tenho como fugir a isto: lembro-me de ser miúdo de perder-me naquelas pessoas todas na capa do Sgt Peppers. Descobria sempre alguém em que não tinha reparado. Há que dizer também que um dos primeiros discos que me foram oferecidos – teria eu uns sete ou oito anos – foi o Macho Man, dos Village People. Por um lado, porque o Gonzo e as galinhas tinham uma versão incrível da canção no Muppet Show, e por outro por causa da capa: eu achava que o facto de haver um índio, um cowboy, um tipo das obras, um que parecia um super-herói, etc, fazia daqueles tipos uma espécie de Vingadores.
Um disco do qual normalmente ninguém gosta e tens como tesouro.
Tenho de confessar: tenho, com grande carinho, vários Top Jackpots, Polystar, Top Genius e colectâneas afins. É muito fácil minimizar a importância dessas compilações, mas para pessoas da minha geração elas eram uma espécie de escola de música. E sim, eram um saco de gatos e tinham muito lixo lá pelo meio – mas o facto de o lixo alternar com coisas realmente incríveis, fazia com que percebêssemos o que eram as coisas incríveis. Basta o Comanchero aparecer ao pé do Kiss, do Prince, para que vão acontecendo pequenas epifanias. Adorava as minhas boas velhas colectâneas. Mal chegava o Verão e o Natal, já sabia que lá vinham mais. Eram as minhas prendas de aniversário (em Julho) e de Natal favoritas.
Como tens arrumados os discos?
Eu a bem dizer não tenho muitos, os vinis clássicos da família estão uns na minha casa, outros na casa da minha irmã, outros na casa da minha mãe; os que tenho, tenho-os em algumas prateleiras de uma estante, na sala. Tenho toneladas de CDs arrumados numa arrecadação. O facto de ocuparem muito espaço e de todas estas coisas estarem disponíveis nos serviços de streaming tornou algo redundante ter a casa cheia de CD. Há que dizer que, apesar de tudo, se consegue ser melómano no formato não-físico. Não querendo fazer publicidade, subscrevi o Tidal porque a qualidade de som daqueles masters consegue ser um espanto.
Um artista que ainda tenhas por explorar…
Daniel Johnston. Fiquei completamente fascinado com o documentário The Devil and Daniel Johnston, adorei o mundo interior daquele tipo, a liberdade total com que criou canções que, por muito ásperas e cruas que soem, têm tanto de genial e único. Ele não tinha filtros: as suas inquietações, angústias, humor – saía tudo em bruto para dentro daquelas cassetes. E adorei o encanto quase infantil dele quando conhece um dos seus fãs mais importantes, o Matt Groening. É compreensível porque é que Groening adora as canções dele – muitas delas são desenhos animados sonoros iconoclasta de traço grosso e rude como Os Simpsons eram no começo.
Um disco de que antes não gostasses e agora tens entre os preferidos.
Durante anos cometi o crime capital de achar que o Elton John era um piroso. E tive discussões com fãs de Elton John que me diziam, irados, que não, que eu estava a ser preconceituoso e inculto e a basear o meu juízo da obra de um artista a partir da fase Nikita. Que, convenhamos, era um bocado pirosa. Mas eles tinham razão. Quando mergulhamos a fundo no acervo de canções incríveis que ele compôs e gravou, temos de engolir quaisquer palavras azedas que tenhamos dito na fase Ice on Fire. Tiny Dancer é uma obra-prima. Your Song é uma obra-prima. Rocket Man é uma obra-prima. Ele fez jóias. O que aconteceu no tempo de Nikita ao Elton John é um bocado o mesmo que aconteceu a todos os grandes artistas em meados dos anos 80: deixaram-se seduzir por aquele tipo de produção, uns com resultados incríveis, outros menos.
As referências à música na série “1986” são expressão da tua coleção de discos?
São expressão da música com que cresci, não apenas a que tive, mas que ouvia na rádio, a que os meus pais ouviam… Foi uma misturada de tudo, bom, mau, assim-assim, com que cresci. Dei por mim a ter tremendo afecto por tudo – até pelo Tarzan Boy. E adorei usar música como material relevante para contar uma história. No final, quando a Marta (Laura Dutra), descobre que o Tiago (Miguel Moura e Silva) tem o Misplaced Childhood dos Marillion e não apenas discos dos Smiths para carpir mágoas, e ela põe a tocar o Lavender no gira-discos, todas as inibições e barreiras que havia entre eles caem e a história de amor deles pode, finalmente, ir em frente. Escrevi essa sequência mentalmente numa viagem de carro entre Benfica e a Parede, com o Lavender em loop a sair pelas colunas do carro e eu a repetir em voz alta os detalhes todos de cada momento, para não me esquecer quando chegasse a casa e voasse para o computador, para escrever. As mesmas referências serviram também para criar as canções originais da série. As mensagens que eu mandava ao João Só pareciam listas de supermercado de referências: “A canção do Úria é Supertramp com um toque de Iron Maiden!”, “A canção da Rita Redshoes tem de a transformar num híbrido entre a Kate Bush e a Siouxsie!”. Foi muito divertido.
Há discos que fixam histórias pessoais de quem os compra. Queres partilhar um desses discos e a respectiva história?
Uma delas serviu de alimento a um momento na série 1986. Naquela fase em que estamos a querer ser muito cool com o que ouvimos, eu comecei a ouvir Smiths, mas percebi que uma miúda por quem tive um valente crush adorava Supertramp. Problema: para os meus amigos que me tinham metido nos Smiths, Supertramp era criminosamente não-cool. Mas ainda assim a tentativa de impressionar falou mais alto e por isso meti-me a ouvir uma colectânea dos Supertramp para ficar com uma espécie de curso intensivo e rápido de modo a impressionar a dita miúda. Não impressionei. Mas fiquei com uma grande simpatia pelos Supertramp.
Um disco menos conhecido que recomendes…
Há uns tempos, a ouvir on-line uma rádio alternativa de Nova Iorque que adoro, a WFMU, eles passam uma das coisas mais contagiantes e fixes que ouvi na vida. É um tema instrumental, muito dançável, com um certo toque 70s. Gravei no telemóvel um bom pedaço, submeti-o ao Shazam. O Shazam não encontrou nada; andei a chafurdar nas playlists do programa, que encontrei, e percebo que é uma coisa chamada That Thing II, por uma banda chamada, precisamente, That Thing. Descobri muito pouco sobre eles, apenas que foram um delírio de um produtor chamado Jerry Rix, nos anos 70. Descobri-o no YouTube, partilhei-o no Instagram, depois pu-lo a tocar num dos directos do Bruno Nogueira, no auge da pandemia, e houve imensa gente entusiasmada. Se fores aos comentários no YouTube do That Thing II, há lá uma quantidade de gente a escrever coisas como “Estou aqui por causa do Markl”, “O Markl trouxe-me aqui”. Ainda sinto muito gozo em desenterrar coisas obscuras e em dá-las a conhecer. Sempre achei que a mística original da Rádio era muito isso.
