Ao terceiro álbum os franceses Le Femme apresentam um disco de horizontes abertos a várias possibilidades, convocando heranças mas sem as fechar em rotas de nostalgia. “Paradigmes” é um belo disco pop que não se importa de escapar às tendências do momento. Texto: Nuno Galopim

Vão longe os dias em que um acontecimento “eleito” conhecia visibilidade global e, em contrapartida, uma restante multidão de propostas corria o risco de passar longe das atenções. No mundo com a vastidão de oferta e uma cada vez mais fragmentada comunicação é-nos mais agora frequentemente dada a possibilidade de encontrar o que, há alguns tempos, seria eventualmente coisa invisível fora do universo ao seu redor. O que não quer dizer que a nossa atenção consiga detetar tudo o que acontecer e logo na hora do nascimento de cada novo artista, banda ou disco. É o caso dos franceses La Femme. O nome não era coisa estranha… Mas nunca os tinha escutado até o momento, há poucos dias, em que me cruzei com as canções de Paradigmes, que é o seu terceiro álbum. Naquele momento de zapping semanal entre as novas edições listadas aqui e ali, a verdade é que, por 54 minutos, não consegui passar para o disco seguinte. Ouvi-o de fio a pavio, tratando de encomendar a edição em vinil ainda a audição ia a meio. Sim, o entusiasmo chegou a esse ponto. Fazia meses que um álbum pop não me arrebatava tanto e tão depressa.
Primeiro a história. São naturais de Biarritz (França) e foram crescendo de um núcleo original formado pelo guitarrista e o teclista em 2010. São hoje uma banda um pouco mais “numerosa” (somam seis elementos) e com um percurso discográfico que conta uma narrativa em evidente rota de evolução que partiu, sempre com as eletrónicas na linha da frente, de uma origem mais próxima de heranças kraut, garage, psych-punk rumo a um progressivo polimento de artestas que, sem abafar nunca as suas heranças genéticas, os coloca hoje num patamar de maior diversidade nas linguagens citadas, embora num espaço instrumentalmente mais rico em possibilidades e de formas mais moldadas pela produção.
Se o álbum de estreia Psycho Tropical Berlim (2013) e o sucessor Mystère (2016) documentam o processo de exploração das referências originais, cabe agora a Paradigmes mostrar como da aprendizagem nasceu um domínio das formas que lhes permite, com uma identidade vincada, fazer uma pop carregada de memórias que querem vencer a distância do tempo e viver o presente. Cool Colorado respira genéticas de um Gainsbourg e de um Daho. Le Sang de Mon Prochain recua a lembranças do yé yé. Já Foutre de Bordel dança com o viço anguloso de um hino pós punk. Foreigner pisca o olho aos pioneiros da mais minimalista pop eletrónica. E Disconnection imagina o que um Moroder podia ter criado se, em vez de Donna Summer, se tivesse cruzado com uma cantora que sonhasse com os palcos dos teatros de ópera (e que eventualmente teria acabado num disco de Malcolm McLaren)… Estas são apenas algumas visitas possíveis a livros de referências e experiências que os já mais de dez anos de atividade dos Le Femme foram digerindo e assimilando para criar hoje uma música cheia de cor, despida de fronteiras (as das geografias e as dos tempos). Paradigmes é, como o título o pode sugerir, um lançamento de paradigmas possíveis para a pop da terceira década do século XXI. Uma pop livre de espartilhos, de seguidismos de moda, feliz na celebração das suas memórias, mas sem desejos de ser coisa nostálgica. É claro que, esse mesmo paradigma, defende que nem todos o tenham de seguir. A liberdade aqui é o valor maior em jogo. E esses são os paradigmas centrais para explicar o que encontramos entre as 15 faixas do terceiro álbum dos La Femme… E à palavra liberdade podemos juntar outra… surpresa. E o que bem sabe descobrir as surpresas que a cada canção este disco tem para nos dar!
“Paradigmes”, dos La Femme, está disponível em LP e nas plataformas digitais numa edição da Microqlima