
Tive o trabalho certo na altura certa. Vivia-se, nos anos 90, uma etapa de enorme prosperidade na indústria da música gravada. E, juntando o “útil” ao “agradável”, num tempo em que a Internet estava ainda longe de ser uma ferramenta de comunicação generalizada, a coisa pedia que as experiências fossem presenciais para que depois os jornalistas as pudessem relatar. No meu caso, na altura, as histórias surgiam depois entre páginas impressas e palavras contadas pela rádio. E foi por isso que, ao longo da década de 90, viajei vezes sem conta a várias cidades, cabendo a Londres a esmagadora maioria dos destinos destes percursos que tinham ou uma entrevista ou um concerto (ou o dois em um) como objetivo.
Foram mesmo muitas as ocasiões que estive em Londres para falar com Trent Reznor, Moby, Beck, os Depeche Mode, os M-People, os Aerosmith, Giles Peterson, Lisa Stansfield, Jean Michel, Jarre, James Lavelle, Yoko Ono, técnicos dos estúdios Abbey Road… E muitos mais… E também para ver concertos, muitos deles com entrevista no próprio dia ou na véspera. Ali vi, alguns deles mais do que uma vez, David Bowie, PJ Harvey, Blur, Tricky, Verve, Beastie Boys, Madonna, Björk, Placebo, Prince, Suede, Pet Shop Boys, Goldfrapp, Mika, Heaven 17 e, numa lista que não acaba aqui, os Radiohead. E com estes últimos, e por alturas de OK Computer, vivi o prazer de entrar no backstage da mítica Brixton Academy, já que a entrevista ia ter lugar muito perto da hora do soudcheck, numa sala perto dos camarins… Uma conversa com Colin Greenwood e Ed O’Brien (e este último foi, ao longo dos anos, uma presença regular em muitas entrevistas dos Radiohead com jornalistas portugueses). Mas deixo ainda uma nota sobre a sala principal da Brixton Academy, que é dominada por um palco ladeado por construções que mais parecem um cenário de Hollywood… Na verdade aquele teatro nasceu como sala de cinema no tempo em que o som chegou aos filmes e o primeiro que ali foi exibido foi, em 1929, o musical The Singing Fool, com Al Jolson como protagonista, num programa que, além da projeção, incluiu depois música ao vivo… Era o DNA da sala a ganhar corpo logo à nascença.
Apesar desse mergulho nas entranhas desta sala célebre, aquela de que guardo mais memórias em Londres já não existe. O muito versátil (e com dois mil lugares) Astoria, ficava no cruzamento mais célebre do centro de Londres, onde partem Oxford St, New Oxford Sr, Tottenham Court Rd e Charing Cross Rd. Naqueles tempos havia ali bem perto uma Virgin Megastore e a Denmark St, transversal de Charing Cross Rd., tinha lojas de instrumentos e de livros sobre música em regime de quase porta sim porta sim… Não era difícil fazer tempo para um concerto sem sair das imediações, portanto. No Astoria vi atuações memoráveis dos Blur, Suede ou Pet Shop Boys, daquelas em que podíamos ver os músicos quase como se estivessem em nossa casa, mas com espaço suficiente para termos a sala com uma pequena multidão. O quarteirão inteiro onde morava o Astoria foi recentemente demolido para dar lugar à construção de um novo interface de transportes subterrâneos… Deste teatro ficam as memórias dos bilhetes e das noites ali vividas. Já não dá para passar à porta e dizer: foi aqui…



Estas viagens eram de agenda sempre intensa. E da minha parte, muitas vezes com o Álvaro Costa a partilhar a festa, incluíam refeições rápidas (mas boas) num Prêt a Manger (para comer bem, barato e rápido) e escapadinhas às livrarias e às lojas de discos, aqui apontando os azimutes ao Soho, que na verdade começa logo nas traseiras do quarteirão onde morava o Astoria.
É claro que fui muitas vezes a Londres “à civil”. Ou seja, sem trabalho na bagagem. E não foram poucas as vezes em que também nessas ocasiões havia concertos a definir a agenda da viagem. Mas nem tudo estava sempre previsto já que, chegado ao aeroporto, a primeira coisa que fazia era comprar a Time Out londrina para saber quem tocava ao vivo por aqueles dias, que filmes estavam em cartaz (e aí a minha sala de referência era o Curzon Soho na Shaftsbury Avenue) e até que livros ou discos estavam a sair essa semana. Hábitos de consulta de informação de quando a Internet ainda não nos ajudava a saber de antemão o que esperar na cidade.
E foi precisamente ao ler as páginas da Time Out que nasceram oportunidades (algo inesperadas) para ver alguns concertos que guardo como algumas das minhas melhores memórias em frente a palcos. Foi assim que, em 1991, vi Sheila Chandra numa pequena sala da qual não me lembro o nome. Na mesma viagem vi também Ryuichi Sakamoto, este no Hammersmith Odeon (porque corri a comprar bilhetes), num concerto no qual, a meio do alinhamento, David Sylvian entrou em cena para cantar Forbidden Colours e Orpheus… E dessa presença eu não estava à espera (foi a primeira vez que o vi à minha frente). Quatro anos depois, mas dessa vez com os bilhetes comprados de antemão, fui a Londres de propósito para rever David Sylvian, numa noite de atuação a solo no grande Royal Festival Hall. Tocou o Ghosts dos Japan. Foi incrível!



O bom hábito de partir para Londres já com bilhetes comprados não nos poupava de (boas) eventuais surpresas. Em 1993 rumei à cidade com um bilhete para ver uma atuação dos Duran Duran no Dominion Theatre (mais uma das casas naquele cruzamento de que falava mais acima)… Estávamos nos tempos do álbum Duran Duran (habitualmente referido como Wedding Album) e o grupo apresentava a digressão An Acoustic Evening With Duran Duran… E é ao esperar pela abertura de portas do teatro que descubro algo que não sabia… É que, tendo esgotado a lotação da sala num ápice, os Duran Duran agendaram um segundo concerto para a meia noite (aquele para o qual tinha bilhete estava marcado para as 19 horas)… O que se faz? É claro que quero ver, penso. Esgotado, lê-se na bilheteira… Mas por uma vez sem exemplo recorri ao mais clássico dos métodos alternativos de compra de bilhetes… A “candonga”… E convenhamos que era uma “candonga” nada discreta (e que em pouco tempo tratou de mim e de outros mais que igualmente procuravam um bilhete para a sessão da meia noite). Foi mais caro. Bem mais caro… Mas por uma vez na vida vi a mesma banda em dois concertos de seguida, na mesma noite… Já não me lembro se gostei mais do primeiro do que do segundo concerto… O certo é que a versão de Crystal Ship dos Doors, que fora surpresa no primeiro contacto no alinhamento das 19 horas, soava já a coisa mais familiar à meia noite…
Os Duran Duran são, talvez sem surpresa, a banda que mais vezes vi em Londres (e isto sem contar as vezes que bati à porta do teclista Nick Rhodes quando era mais gaiato). Numa ocasião, em dezembro de 1998, vi-os na Wembley Arena. Esse foi um concerto entre uma maratona durante a qual corri por entre vários palcos da cidade na semana antes do Natal desse ano. Dessa feita em modo de revisitação de velhos heróis. De uma assentada, e em meia dúzia de dias vi, além dos Duran Duran, os Human League, Culture Club, ABC, Howard Jones (que tinha com baixista Nick Beggs dos Kajagoogoo, com quem fiquei depois na conversa) e Marc Almond (este no belíssimo Albery Theatre).
Agora de todos os concertos que vi em Londres há um que posso partilhar com mais do que conversa fiada. Também dei por ele ao chegar a Heathrow, lendo as páginas da Time Out na carruagem do metro… Estávamos em setembro de 1992 e lá ia eu para a semana habitual de compras de discos, vídeos e livros em Londres… Mas um nome saltou à vista… Um nome e um lugar. E que lugar! Marc Almond ia tocar no Royal Albert Hall. Passei na manhã seguinte pelo magnífico edifício circular junto aos museus de ciência e de história natural (e do V&A) e ainda havia alguns bilhetes soltos para camarotes… Escolhi o que pensei que me podia dar melhor visão sobre o palco entre a dieta de possibilidades ainda disponível. O concerto era daí a poucos dias e a sorte de ter conseguido o bilhete traduziu-se numa das melhores noites de música ao vivo que alguma vez vivi. O alinhamento cruzava a obra a solo de Marc Almond, juntando canções dos Mambas e dos Soft Cell (fechou com Tainted Love e Say Hello Wave Goodbye). Em palco havia uma banda, um batalhão de eletrónicas, um momento para voz e piano, uma orquestra e bailarinos que ajudaram a compor quadros cénicos para algumas canções como sucederia num musical clássico. Foi nessa noite que Marc Almond estreou uma versão em inglês de What Makes a Man a Man, um clássico de 1972 de Aznavour que pouco depois surgiria como single. A gravação do concerto ficaria depois fixada em disco e em DVD com o título 12 Years of Tears. Ainda há poucos dias revi o filme do concerto e procurei recriar o serão inesquecível que a 30 de setembro de 1992 vivi naquele camarote do Royal Albert Hall.

Não deixei de ir a Londres (em trabalho e à civil) depois da virgem do milénio. Mas não o fiz coma frequência tão insistente com que visitei a cidade nos anos 90. Ver no Palladium o concerto em que Rufus Wainwright recriou uma noite histórica de Judy Garland no Cargenie Hall ou uma atuação num pequeno clube dos White Rose Movement são algumas das minhas memórias de palcos londrinos no século XXI. Mas de todas a melhor nasceu (uma vez mais) de um acaso. Tinha deixado passar meia dúzia de dias sobre a data em que foram colocados à venda bilhetes para uma nova produção da ópera Akhnaten, de Philip Glass, pela English National Opera… Resultado: esgotou! Lá parti resignado para Londres… Mas ao passar em frente ao London Colosseum, na tarde da última apresentação da ópera, resolvi entrar para perguntar se por acaso alguém tinha desistido… Respondem-me na bilheteira “sim, há uma desistência, mas é na plateia e central”… Ou seja, era um bilhete caro. Mas nem pensei duas vezes. Comprei-o… E naquela noite quem estava também na plateia a ver?… O próprio Philip Glass! O bilhete valeu todos os tostões. Ou pences ou lá o que eles usam…