
Creio que só descobri Prince quando o mundo inteiro deu por ele. Estava quase a terminar o liceu quando When Doves Cry anunciou a chegada de Purple Rain… Ouvi a canção na rádio e pouco depois o teledisco era presença assídua na RTP (ainda não havia canais de satélite por estes lados). Comprei o doze polegadas de When Doves Cry, que teve edição local, e o álbum… Pouco depois encontrei o anterior 1999 numa edição importada… E numa outra ocasião, não muitos meses mais adiante, levei de uma assentada para casa (graças ao que tinha arrecadado no Natal) os anteriores For You, Prince, Dirty Mind e Controversy. É certo que faltavam singles e, de resto, ainda hoje tenho alguns dos primeiros sete polegadas de Prince na lista das prioridades sempre que visito uma nova loja de discos. Mas quando em 1985 chegou Around The World In A Day, já tinha a revisão da matéria em dia… Prince não era mais nem um estranho nem uma descoberta. Era uma presença firme no mundo dos discos que mais gostava de ouvir.
Segui atentamente as chegadas dos magníficos Parade, Sign O’The Time e Lovessexy. E recebi com entusiasmo as canções de Batman, que viram a luz do dia em 1989. Poucos tinham atravessado os oitentas com tantos discos capazes de arrebatar as “cinco estrelas”. Nesses dias ainda não escrevia sobre música, mas se o fizesse acho que os tinha corrido todos às tais cinco estrelas, talvez com Batman a quatro… Mas Batdance está, contudo, entre os seus melhores singles dos oitentas. Mas a década de Prince não acabou para mim ao som desse álbum. No verão de 1989 passei algumas semanas com amigos que tinha na Dinamarca… Com eles descobri nomes menos “internacionais” da pop nórdica. Mas a maior das descobertas que fiz em Aarhus foi, numa pequena loja de discos, o entusiasmo que o empregado que ali trabalhava sentia igualmente pela música de Prince.
– Já ouviste o Black Album?, perguntou-me numa das visitas que fiz à sua loja…
O Black Album? Aquele disco que era para ter saído dois anos antes, mas que o próprio Prince tinha mandado retirar da agenda de lançamentos? Pois houve promos que chegaram a circular e, mesmo antes da era das partilhas online, a música estava, pelos vistos, a fluir… Na forma de cassetes trocadas à socapa. Pois ele tinha o Black Album. E disse-me para lá voltar no dia seguinte que levava uma cópia para mim… E assim regressei a Lisboa com o Prince dos oitentas escutado de fio a pavio…
Tinha começado a trabalhar em rádio quando Batman era ainda novidade recente. Mas o primeiro disco “novo” que passei regularmente foi já o seguinte Graffiti Bridge, editado em 1990, que assinalava o início de uma etapa de trabalho com a New Power Generation mas que estava longe de ser o seu melhor disco. No ano seguinte Diamonds and Pearls foi o primeiro álbum de Prince sobre o qual publiquei um texto (n’O Independente). E os hábitos depois foram coisa de manter, tocando-os na rádio, escrevendo sobre eles no Blitz e pouco depois no DN. Por esta altura Prince passa uma fase de confronto com a editora que o acompanhava desde que começara a editar discos. Tinha deixado de usar o seu nome, trocando-o por um símbolo que não tinha necessariamente uma expressão de “nome” que se pudesse dizer (era mais fácil de escrever, surgindo então vários “truque” gráficos, como, por exemplo, este: O(+> Pois…
A desavença terminou com uma separação (que duraria até à segunda década do século XXI). A Warner teria ainda discos para editar. Um deles, Come, saiu em 1994, apresentando ainda o nome de Prince na capa, o que já não aconteceu com os seguintes The Gold Experience e Chaos & Desorder. Mais adiante, em 1999, novamente assinado como Prince, o disco de arquivo The Vault – Old Friends For Sale fechava o relacionamento ao mesmo tempo que representava um primeiro mergulho entre gravações de arquivo, fixando no nome de um disco o mítico nome pelo qual ainda hoje é conhecido: “The Vault”. Ou seja, o cofre.
Mas 1996 foi o ano da separação e emancipação. E também o o ano em que Prince editou mais álbuns. Ao todo foram três. O já referido Chaos & Disorder (um dos seus discos mais fraquitos), a banda sonora de Girl 6 e, depois, o triplo álbum que assinalou a “libertação”. E foi por causa desse triplo álbum que viajei a Paisey Park… E falei com… o artista.
Chamou-se Emancipation o triplo álbum que Prince apresentava como o seu primeiro disco de estúdio depois de terminada a relação com a editora que antes o representava. A ser editado pela NPG Records, o álbum lançava um novo modelo de negócio que procuraria, a cada novo lançamento, o estabelecimento de um acordo de distribuição. E neste caso a editora escolhida foi a EMI. E para assinalar o lançamento desta emancipação na forma de triplo CD – o vinil aqui só chegou bem recentemente – os representantes de Prince chamaram a Paisley Park um responsável de cada escritório local da editora. E, com ele, um jornalista do respetivo país. A EMI portuguesa fez-se assim representar pelo seu diretor, David Ferreira. E com ele fez viagem um jornalista português. E fui o escolhido.
Da viagem lembro-me de passar o tempo a conversar com o David, que ia fazendo alinhamentos para compilações temáticas sobre isto ou aquilo… E chegado às Twin Cities – ou seja, Minneapolis e St Paul – agradeci ter como parceiro de viagem um homem que gosta de livros. Porque ao passo das restantes comitivas, que rumaram logo ao Mall of The Americas – o Colombo lá do sítio, mas que tinha a fama de ser o maior do mundo – passámos antes por St Paul para ver a casa onde tinha morado o escritor Scott Fitzgerald. E depois lá fomos ter com os restantes editores e jornalistas ao shopping, onde descobri uma livraria com bela seção de música onde, entre outros títulos, comprei Time To Rock, de David Szatmary, uma história social do rock’n’roll que tinha acabado de surgir nos escaparates das novidades.
No dia seguinte a agenda apontava a Chanhassen, o subúrbio de Minneapolis onde Prince tinha mandado erigir o seu complexo de estúdios aos quais associara uma área para a suas residência. Podia dizer-se que tinha estúdios em casa… Ou que morava no local trabalho…
O edifício que de fora víamos geometricamente arrumado e todo de branco transformava-se, mal se passava a porta, num mundo de formas mais desafiantes e de cores. Muitas cores. Os tetos eram pintados, com nuvens e teclados… Havia uma gaiola dourada com um pássaro. Um átrio central dava acesso aos estúdios de áudio. O “A”, maior, estava parcialmente ocupado por uma grande mesa cheia de acepipes, com guardanapos cor-de-laranja (tinha a ver com a capa do disco), com o título do disco impresso a dourado. Lembro-me de comer morangos envolvidos em chocolate preto. E de haver um bolo coberto a folha de ouro… Desde então devo ter um esófago de fazer inveja ao barroco alemão…
Uma escadaria ligava aquele piso térreo, onde se juntavam editores e jornalistas de todo o mundo, ao andar superior que correspondia à zona residencial do complexo. E a dada altura a porta no topo da escadaria abriu-se e, qual Luís XIV descendo degraus de Versalhes, Prince, Mayté, com quem se casara esse ano, avançaram rumo aos que os esperava. Desciam eles e a restante comitiva palaciana… Fez-se silêncio (salvo a música que se escutava no ambiente)… E eu, que não acredito em nada que a ciência não possa provar, dei por mim a sentir algo raro e inesperado… Um magnetismo parecia emanar daquele corpo. Não era nada sobrenatural, claro. Chama-se carisma. E com uma evidente dose de admiração maior pela figura. O certo é que a si chamou todos os olhares e atenções. Todos seguiam os seus passos, gestos e olhares. Sorria, cumprimentava. Caminhava entre os convidados, alguns respondendo aos olhares com um sorriso. Outros trocando palavras. É claro que fui falar com ele. E um dia talvez conte o que lhe perguntei e o que me respondeu…
Ouvimos várias faixas do disco. A MTV ia fazendo entrevistas aos convivas… E Prince, depois de uns minutos entre os convidados, desapareceu… Para só reaparecer mais tarde, já em cima da meia noite. Por essa altura tinham-nos chamado para nos reunirmos no grande estúdio de televisão que faz parte deste mesmo complexo e no qual um grande palco então acolheu um concerto especial. Parte foi transmitida pela MTV. Depois houve aftershow para quem ali estava… Era Prince a ser Prince, portanto.
Um dia depois estava a voar de regresso a Lisboa. Mas, tal como tinha voltado da Dinamarca com um pequeno tesouro na forma de cassete, desta vez era a experiência que comigo viajava de volta a casa… A experiência e um guardanapo cor-de-laranja com “Emancipation” impresso, que tinha surripiado e metido no bolso das calças.