A pop “arte” à conquista do palco e das multidões, sem se mascarar em coisa rock’n’roll

Originalmente lançado em suporte de VHS, o filme de um concerto apresentado no Rio de Janeiro em dezembro de 1994 regressa agora em formato de DVD, num lançamento que inclui ainda dois CD com o áudio de todo o alinhamento. Texto: Nuno Galopim

A obra em vídeo dos Pet Shop Boys originalmente lançada em suporte de VHS (*) guarda memórias e tesouros que merecem não ficar esquecidos num tempo em que são já bem raras as casas que ainda mantém os aparelhos que as permitam ler. Da colheita anterior a Somewhere (1997), o primeiro título a conhecer edição simultânea em DVD o grupo tinha até aqui apenas reeditado em suporte digital o magistral Performance, filme-concerto da digressão de perfil teatral que o grupo apresentou depois do lançamento do álbum Behaviour. Mas se por um lado os telediscos sucessivamente apresentados nos vídeos EPs Television (1986), Showbusiness (1988) e Promotion (1991) acabariam quase todos por surgir em compilações de telediscos lançadas em DVD, outros títulos mantinham-se silenciosamente esquecidos… E nesse lote de pérolas essencialmente guardadas em cassetes de VHS está por exemplo Highlights, de 1990, que junta imagens de (apenas) oito temas do alinhamento da digressão inaugural do grupo (e que teve lançamento em laserdisc no Japão), assim como Projections, de 1993, que junta os filmes que Derek Jarman criou para serem projetados em palco, precisamente nessa mesma digressão. Melhor sorte tem por isso, para já, Discovery, o filme-concerto de uma das noites de uma digressão que começou em Singapura, seguiu para a Austrália e viajou depois até à América latina. Captadas numa das atuações que o grupo apresentou no Rio de Janeiro, as imagens documentam um momento importante de várias transições em curso. Mas acima de tudo confirmam o poder de atração de um alinhamento apenas possível perante uma obra tão rica em grandes canções.

            Depois da primeira experiência mais focada no protagonismo dos filmes de Derek Jarman e de uma segunda pensada como uma peça de teatro musical,        esta terceira digressão dos Pet Shop Boys abriu caminho a uma relação mais livre com o palco. Há uma cenografia cuidada, um guarda-roupa (que implica diversas mudanças durante o concerto) e um trabalho de coreografia claramente definido. Mas ao invés do que fora a encenação de Performance, aqui há maior liberdade de movimentos e espaço para a surpresa, mas sem que tal os leve de modo algum a experimentar os mimetismos da celebração rock’n’roll que muitas vezes caracteriza a experiência de palco até mesmo de bandas pop sobretudo suportadas pelas eletrónicas (veja-se o caso dos Depeche Mode nesse outro sentido das possibilidades). Uma escadaria, um grande ecrã, os teclados na boca de cena (mas em espaço lateral), as percussões ao cimo da estrutura. Os bailarinos eram aqui go go dancers brasileiros, vincando os seus gestos uma das várias expressões de diferença face ao mais habitual em palcos pop. Mas é da força das canções, na solidez de uma interpretação simples nas formas musicais mas exuberante na teatralidade (dos gestos às roupas) que vive a força de um concerto que, mesmo mostrando um grupo em busca de uma nova forma de estar em palco, é já mais do que suficiente para satisfazer a vasta plateia in loco e a que, depois, em casa, pode ver a gravação.

            Não estamos perante a melhor realização de filmes-concerto… E um concerto como este merecia até melhor… A transcrição do analógico para o digital não procurou uma versão HD, já que tal coisa não era possível dadas as características das imagens originalmente captadas em vídeo. Assume-se a “patine” do SD, melhora-se o som, respeita-se a realização. E trata-se assim o reencontro de Discovery como uma janela para a redescoberta de um momento em que os Pet Shop Boys tinham encerrado (sem ainda o saber) a sua “fase imperial” ao som do álbum Very, correspondendo a etapa sul-americana da digressão a um momento de descoberta e sedução pela cultura latina que o grupo, que já antes lhe tinha piscado um olho em Domino Dancing, assimilou mais a fundo e levou depois para as canções do álbum Bilingual, que editaria dois anos depois.

            Se muitas das canções surgem instrumentalmente em formas próximas das originais – porém em versões contando com o que os teclados e sequenciadores de Chris Lowe permitiam recriar ao vivo – já Rent e Suburbia abrem um oásis “acústico” inesperado a meio do alinhamento. Igualmente inesperadas são as citações a êxitos dançáveis do momento como Mr Vain, dos Culture Beat, que se escuta a meio de One in a Million ou Rhythm of The Night, dos italianos Corona, em Left to My Own Devices. Já o clássico I Will Survive, de Gloria Gaynor, cruza-se com It’s a Sin, num dos quadros mais arrebatadores de todo o concerto. Pelo alinhamento passa ainda uma versão de Girls & Boys dos Blur (para quem os Pet Shop tinham criado uma remix). E Chris Lowe assume o protagonismo vocal em Panninaro. Sinais de novas possibilidades em jogo, o grupo aposta ainda em sincronismos entre o vídeo e a música, interpretando Absolutley Fabulous com as vozes de Patsy e Edina que surgem no ecrã, assim como criam um momento épico em volta de Go West, usando as imagens do teledisco como fundo. Pelo ecrã, mas não necessariamente jogando numa necessidade de sincronismo com o áudio, passam ainda imagens criadas por Derek Jarman ou Bruce Webber.

            A nova edição em DVD junta um duplo CD com o áudio do concerto, transformando assim Discovery em mais um disco ao vivo dos Pet Shop Boys (e é nessa forma que, de resto, se apresenta nas plataformas de streaming). O booklet inclui uma entrevista com Neil e Chris onde explicam a digressão, fotos da época e um diário (do vocalista) no qual o mais interessante a reter é o modo como, sobretudo entre as atuações em Singapura e em Porto Rico, o grupo foi modificando o alinhamento, omitindo momentos, acrescentando outros, dando conta de como uma digressão é um work in progress. De certa forma, e mesmo tendo a noite final ocorrido um dia depois em São Paulo, este filme é o retrato que fixa a ideia que aqui quiseram apresentar. E que belo concerto este foi!

“Discovery”, dos Pet Shop Boys, está disponível em DVD + 2CD numa edição da Parlophone/Warner. Nas plataformas de streaming está disponível a versão em áudio.

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