Para reencontrar os mundos e a voz de Lisa Gerrard

Depois de primeiros discos, ora a solo, ora na companhia de Pieter Bourke, lançados nos anos 90 ainda através da 4AD, confesso que fui perdendo aos poucos o contacto mais atento com Lisa Gerrard talhado anos antes, ao som dos Dead Can Dance. Ainda acompanhei as parcerias com Patrick Cassidy editadas em disco já depois da viragem do século, mas já os diálogos com o veterano Klaus Schulze não cativaram como outrora… Havia uma cada vez maior presença da sua música no cinema, sobretudo depois do impacte de O Gladiador, de Ridley Scott, e, mais adiante, de Samsara, uma continuação da exploração dos universos visuais e temáticos de Baraka, do mesmo realizador Ron Friecke, filme que tinha usado música dos Dead Can Dance na sua banda sonora… Mas o que mais me entusiasmou na obra da cantora australiana no século XXI foram mesmo os momentos de reunião – em disco e em palco – com os Dead Can Dance. De certa maneira, o seu novo disco, editado em parceria com Jules Maxwell, talvez seja uma experiência mais próxima desse velho porto seguro do que muitas das suas outras experiências recentes. Isto sem deixar de apontar que a sua interpretação vocal numa gravação da Sinfonia Nº3 de Gorécki, ao lado da Genesis Orchestra (editada em disco no ano passado) é claramente mais interessante e “pessoal” (mas se calhar menos mediatizada) do que a que, em 2019, escutámos com a voz de Beth Gibbons.

            Quem é então Jules Maxwell, podem estar a perguntar. Na verdade, é um colaborador dos Dead Can Dance, que entrou em cena para criar uma nova banda para a estrada. Teclista, esteve depois a trabalhar em música nova para o coletivo Le Mystère des Voix Bulgares (e ninguém me convence de que há aqui mais do que apenas o nome do coro que uma edição da 4AD tornou célebre nos anos 80). Jules chamou Lisa Gerrard para colaborar nesse álbum, que seria editado em 2018. E ao que parece foi de ideias que então ficaram de fora do alinhamento – chamar-lhes “sobras” é maldade – que começou a nascer o disco que agora editam com o título Burn e no qual colaborou ainda James Chapman, discograficamente conhecido como… Maps. Num ano de rotinas alteradas, os três criaram um disco como muitos de nós vivemos estes meses de trabalho: à distância. Lisa na Austrália. Jules no Reuno Unido. James em França. Burn foi assim o lugar onde se encontraram.

            Não estamos perante “algo completamente diferente” face ao que antes já tínhamos escutado com a voz de Lisa Gerrard. De resto, o seu canto é aqui a presença mais rapidamente identificável. A música, porém, junta os azimutes essencialmente ambientais e os valores texturais de muitos dos seus discos a um trabalho com as eletrónicas que junta linhas que acrescentam à voz dimensões dramáticas, cores e até entusiasmos distintos dos que se escutavam entre os rumos seguidos ao lado, por exemplo, de um Klaus Schulze. Se uma canção como Deshta podia ter nascido a bordo de uns Dead Can Dance, já Do Yo Sol traduz um espaço de procura de caminhos, representando Keson o momento em que mais se afasta do ponto de partida, embora num espaço definido à maneira de uma Lisa Gerrard, rico em texturas, ambientes e com um final cinematográfico… épico. Não esperem em Burn um mundo de maravilhas como as que se escutaram, em tempos, em Duality, o álbum que gravou com Pieter Bourke em 1998. Mas em Burn há pistas suficientes para um bom reencontro com os caminhos da música, das visões e da voz de Lisa Gerrard.

“Burn”, de Lisa Gerard e Jules Maxwell, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais numa edição Atlantic Curve / Schubert Music Europe

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