O álbum ‘Passionoia’, que em 2003 encerrou a discografia dos Black Box Recorder, é um dos mais belos discos pop do século XXI e um grande exemplo da melhor escrita de canções de Luke Haines. Texto: Nuno Galopim

Um dos mais talentosos autores de canções revelados pelos anos 90, Luke Haines começou por revelar o seu trabalho através dos The Auteurs, banda sonicamente centrada no trabalho para guitarras que se estreou em 1993 com New Age, álbum de estreia que justificadamente cativou então atenções.
Quem eram, antes de mais, os Auteurs? Acima de tudo, o veículo para dar corpo às canções e histórias cantadas pelo inglês Luke Haines. Nascido em 1967, Haines tinha já assinado um passo com relevância histórica ao ver a sua banda anterior, os The Servants, ser incluída no alinhamento da mítica cassete C86, lançada pelo NME, que tantas ideias semeou no mapa futuro da cena pop/rock alternativa. Em 1991 junta uma série de músicos, alguns vindos da banda anterior, e forma os Auteurs, que chamam atenções a tocar à volta de Londres no ano seguinte, chegando a disco com New Wave, um álbum que deixa não só evidentes as heranças clássicas que os definem – Kinks, Beatles, Bowie – e um impressionante conjunto de canções de brilhante alma narrativa, contando sobretudo histórias desencantadas, muitas delas vividas entre o mundo do espetáculo e da fama e suas periferias. Juntando temas como Show Girl, Bailed Out ou Starstruck, o disco cativou mais atenções junto da crítica que do público. Mas ajudou a abrir caminho a um recentrar de atenções do panorama pop britânico junto de heranças mais clássicas, a Luke Haines (sem dúvida um dos grandes escritores de canções da sua geração) tendo faltado talvez a imagem e carisma (e talvez o valor acrescentado de aposta da sua editora) que fez de Jarvis Cocker (Pulp) ou Brett Anderson (Suede) os rostos dos tempos que se seguiriam.
Com o tempo, Luke Haines foi alargando os horizontes e ensaiando outros caminhos, propondo as novas ideias em novos projetos para lá dos Auteurs. Um deles, aos quais chamou a colaboração da vocalista Sarah Nixley e do baterista John Moore (que tinha integrado os The Jesus & Mary Chain), apresentou-se em 1998 com o álbum England Made Me, sob a designação Black Box Recorder. Mas ao contrário da experiência pontual em paralelo que havia proposto em 1996, assinada como Baader Meinhof, Luke Haines deu continuidade ao projeto Black Box Recorder, o trio assumindo mesmo o espaço protagonista da sua atenção após o fim dos Auteurs, o que aconteceu em 1999.
Editaram então Facts of Life (2000) onde, depois das guitarras dominantes do álbum de estreia, se ensaiava uma nova elegância pop suave talhada com o auxílio das eletrónicas. O tema-título fez-se notar e o álbum também. O mesmo não aconteceria contudo em Passionoia, terceiro álbum do trio, editado em 2003 sob estranho e injusto silêncio mediático. Triste destino para um dos melhores álbuns pop da primeira década do século, herdeiro (tal como os melhores discos dos St. Etienne) de um saber pop made in England que aqui conhece uma das melhores coleções de canções do seu tempo.
De novo Passionoia juntava ao som dos Black Box Recorder uma vibração dançável mais intensa, valorizando os diálogos entre guitarras, eletrónicas e voz já escutados no disco anterior e mostrando afinidades com caminhos há muito trilhados pela luminosidade da música de uns Pet Shop Boys. Retratos ‘brit’ do seu tempo, sob um prisma que tanto sabe observar como comentar com algum sarcasmo, as canções de Passionoia refletem também o sentido melómano dos seus autores, com hinos maiores em Being Number One (como é que esta canção não é um hino pop maior do nosso tempo?) e, mais ainda, em Andrew Ridgley, tema que evoca o companheiro de George Michael nos Wham!. Elegante (e a voz sussurrante de Sarah assegura uma certa paz às formas), melodista, garrido e cheio de luz pop, Passoinoia é um verdadeiro tesouro a revisitar.