A outra música de dança segundo Murcof

Nem toda a música de dança eletrónica é coisa para discoteca. O novo disco que Fernando Corona nos apresenta como Murcof apresenta duas progressões ambientais que criou para coreografias da companhia Alias, que tem sede em Genebra. Texto: Nuno Galopim

A obra que o mexicano Fernando Corona assina como Murcof, conta-se entre as mais inventivas e estimulantes que a música eletrónica nos revelou neste início de século. Descobrimo-lo em Martes (2002), disco que juntava uma lógica de composição atenta ao pormenor, ao fragmento, revelando sugestões de contemplação onde, por entre as eletrónicas, brotava a presença (determinante) de outras paisagens, entre as quais se destacavam samples de obras de Arvo Pärt. E assim assinalava, desde logo, um interesse em lançar a sua curiosidade sobre terrenos mais próximos da música habitualmente rotulada como “erudita”, abrindo assim o horizonte das possibilidades a um espaço mais vasto que o das mais frequentes escolas seguidas por muitos dos artesãos contemporâneos das eletrónicas.

De então para cá editou discos de remisturas e alguns álbuns em nome próprio, entre os quais Utopia (2004), Remembranza (2005), Cosmos (2007) ou La Sangre Iluminada (2009) que deram novo corpo à mesma demanda, definindo um percurso de identidade bem vincada com uma música que é uma verdadeira dor de cabeça para quem gosta de taxonomias, porque impossível de rotular. Além de Mexico (2008) e Being Human Being (2014), gravados em colaboração com Erik Truffaz, de First Chapter (2013), criado com com Philippe Petit e da parceria com a pianista Vanessa Wagner em Statea, de 2016, o percurso discográfico de Murcof tem até aqui uma outra pérola maior em The Versaillhes Sessions, disco de 2008 que nasceu de um desafio para um espetáculo nos jardins do Palácio de Versalhes. Uma obra site-specific, portanto, criada para Les Grands Eaux Nocturnes, um programa desenhado para uma noite de música e luz a apresentar em frente a uma das grandes fontes (jeux d’eau) que adornam o Jardin du Roi, para a qual Fernando Corona fez questão de juntar a uma composição claramente do presente uma série de ecos dos dias em que esta era “a” casa da mais faustosa corte europeia, na qual trabalharam muitos compositores.

De certa forma, mais do que buscar possíveis novas expressões de uma inquietude autoral que já manifestou em discos como Martes ou Cosmos, o novo disco que agora edita é, tal como as sessões para Versalhes, um objeto criado em função de um desafio para um tempo, um lugar e colaboradores concretos. The Alias Sessions não é mais do que a reunião, sob uma capa comum, de música que Fernando Corona criou para Contre Mondes e Normal, duas coreografias criadas por Guilherme Botelho para a companhia Alias, de Genebra. Mais do que nas arquiteturas ritmicamente estruturadas que suportavam algumas das suas primeiras composições, a música lança aqui caminhos que mais facilmente sugerem ambientes, espaços ou atmosferas, do que caminhos mais facilmente descodificáveis como suporte arquitetónico para movimentos sincopados. As atmosferas, mais sombrias no disco “um” do que no “dois” nascem, apesar da estruturação rítmica mais discreta que nos seus primeiros discos, num clima de liberdade formal que coreógrafo e bailarinos certamente exploraram com a mesma emancipação com que o ouvinte aqui pode encontrar caminhos para escutar o que faixa a faixa vai surgindo. Tanto a música que serviu Contre Mondes como a que foi criada para Normal conhece aqui uma outra “libertação”, que chega no momento em que a edição em disco a afasta do pragmatismo dos movimentos e dos corpos para a qual estas peças nasceram, e a dota de sentidos novos que as vivências e as sensibilidades de cada um podem depois interpretar ou apenas saborear. Talvez mais perto de uma ideia de progressão atmosférica, como escutamos na música de Wolfgang Voigt (conhecido por Gas), mas com uma dimensão lírica mais evidente e sem perder as marcas da identidade com que Fernando Corona tem definido a sua obra, The Alias Sessions não sacia talvez quem buscava as respostas sobre o que poderia ser um novo disco de estúdio de Murcof. Mas desde as sessões de Versalhes não nos dava um quadro tão estimulante de boas sugestões para escutar… e sonhar. O melhor da nova música eletrónica continua a contar com Murcof.

“The Alias Sessions”, de Murcof, está disponível em 2LP, CD e nas plataformas digitais, num lançamento da Leaf Label

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