
Um ano depois ia ser diferente. Em 2020 o primeiro grande confinamento generalizado tinha ditado algo nunca antes visto. Pela primeira vez, desde que surgira em 1956, o Festival Eurovisão da Canção não se ia realizar. E lembro-me de, a 16 de maio de 2020, me sentar com a Carla Bugalho no estúdio na sede da RTP, onde quatro anos antes nos tínhamos conhecido, para fazer o comentário em direto para Shine a Light, o programa que então celebrou, da maneira possível, um novo capítulo de uma história que, assim, não se fazia completamente em silêncio. Fiz o direto, mas com uma sensação de profunda tristeza. Afinal era suposto, naquele dia, estarmos na Ahoy Arena, em Roterdão, para viver o momento da grande Final. Praticamente um ano depois, na manhã de 15 de maio de 2021, dei por mim a entrar pela primeira vez num aeroporto ao fim de muitos meses sem viagens. O segundo contingente da delegação portuguesa partia para Roterdão onde, há já alguns dias, estavam os Black Mamba, assim como aqueles que os acompanharam nos primeiros ensaios. De lá as notícias que chegavam eram boas. Da canção, na qual agora só posso imaginar que na verdade muitos a não haviam ainda escutado com atenção, chegavam reações de maior entusiasmo. E é certo que as imagens e os movimentos levados a palco se juntavam à música para vincar mais claramente a narrativa que Love is On My Side nos tem para contar. Era uma história vivida em Amesterdão, na Holanda, que agora ganhava forma e chamava atenções numa outra cidade holandesa (e os jornais locais procuravam a mulher que inspirara a canção). O primeiro desafio, o de ser apurado para a final, era, para já, o natural objetivo (assim o é, de resto, para todos os que passam pelas semifinais). Os Black Mamba respondiam a cada vez mais solicitações para entrevistas. Os ecos internacionais cresciam…. E coisa parecia bem encaminhada. Mas havia ainda muito trabalho pela frente…
Deixem que vos conte que a minha primeira experiência de aeroporto em pandemia foi tudo menos um passeio tranquilo. Um distanciamento impossível dominava a zona de check in e de entrega das malas. Havia muita gente a viajar naquela manhã. E cada vez menos pessoal de terra para nos atender… Todos com máscaras, é certo. Mas alguns a acreditar ainda que a prioridade é tapar o queixo e não o nariz… Enfim… Já nem vale a pena tentar compreender. Adiante, que são duas horas e meia de avião até chegar a Amesterdão.
Em Schipol os dois voluntários da delegação portuguesa esperavam-nos e, no autocarro atribuído, lá seguimos para Roterdão, com paragem no centro de testes junto à Ahoy Arena antes mesmo de entrar no hotel. As regras pediam dois testes antes da partida (achei mesmo estranho ninguém os pedir no aeroporto de Lisboa). E um à chegada. E só com este último negativo (ou “negatief” como surgia no email que então recebíamos) poderíamos ter validada a nossa acreditação.
O centro de testes era uma tenda enorme. A primeira sala tinha um corredor baiado em ziguezague até chegar aos guichets. Aí era-nos dada uma etiqueta e o número da cabine onde nos fariam o teste. Cabina 16… Lá segui e ali encontrei uma simpática enfermeira de cabelos ondulados tranquilamente despenteados e muito conversadora. Quis saber tudo sobre a canção portuguesa e prometeu que a escutaria nessa noite (e assim o fez, que a voltei a encontrar num novo teste dois dias depois). Depois foi assoar o nariz, zaragatoa e sala de espera por uns 20 minutos. Ali estavam também os concorrentes da Finlândia e da Letónia (com máscara foram os que deu para perceber quem eram naquele primeiro encontro). E ficámos, em cadeiras a 1,5 metros de distância umas das outras, até que um SMS nos mandou ver o email… “Negatief”… Ok, podemos continuar. Seguimos para o Hotel, que partilhávamos com a delegação da Eslovénia e parte da do Azerbaijão, e onde invariavelmente os Black Mamba davam entrevistas na sala de trabalho no piso menos um que nos fora consignada. Era o nosso acampamento-base. Entrevistas, ensaios e a gravação de um novo teledisco que iriam lançar depois da semifinal (o Crazy Nando que já podem ver e ouvir), fizeram da agenda do grupo em Roterdão um mapa de trabalho sempre preenchido. Não havia tempo para folgas.
As regras de segurança pediam a cada delegação que se mantivesse em “bolha”. Não devíamos ir nem a lojas nem a restaurantes. E não fomos. E por isso no domingo acordei bem cedo para, depois do pequeno almoço no quarto (era outra regra), caminhar pelas ruas e pelo parque ali perto, regressando ao hotel quando começou a haver mais gente a passear. Já tinha estado em Roterdão… Em 1997, para ver ali um concerto da Pop Mart Tour dos U2. E dessa vez, sem pandemia, tinha sobrado algum tempo para caminhar entre as ruas e ver, sobretudo, os belos exemplos de arquitetura contemporânea que a cidade nos tem para mostrar. Desta vez a única caminhada, nessa manhã, fez-se junto ao rio, até à pequena marina que ficava nas traseiras do Hotel e, depois, mais uns minutos para ensaiar uma meia dúzia de passos dentro do parque que se abre logo ali… Ficou a vontade de regressar. Sobretudo para visitar as lojas de discos já que que um dos elementos da equipa que trabalhou a relação da cidade com a Eurovisão, e que é meu amigo, me fez uma detalhada lista do que poderia ali encontrar. Darei uso a essa lista de lojas de discos numa próxima ocasião, fica prometido… Com uma bela janela sobre o rio, mostrando ainda três grandes edifícios e a ponte Erasmus, o meu quarto serviu de escritório até à hora do “tapete turquesa” por onde desfilaram praticamente todos os concorrentes. Só não compareceram os de duas delegações nas quais tinham surgido casos positivos, ficando ainda de prevenção (e sujeitos a testes) as duas outras delegações que partilhavam o mesmo hotel. O desfile na passadeira esteve longe de ser coisa televisivamente entusiasmante. Mas aqui ou ali houve uma ou outra frase interessante dita pelos concorrentes… E nada como escutar e tirar notas para depois usar essas revelações nos comentários.
Na manhã seguinte, novo teste. “Negatief”… E finalmente ordem para entrar na arena… Na verdade um complexo com vários edifícios, um deles sendo a sala de espetáculos propriamente dita. A entrada das delegações ficava diametralmente oposta à do público e dava acesso a uma “delegation bubble” de dimensões gigantescas. Camarins e lounge com espaçamento. Muito espaço depois antes de chegar às áreas de maquilhagem e cabelos. E ao pequeno bar que ali servia uma sandes (a de pastrami era ótima) e bebidas quentes e frias.



Na segunda-feira de manhã de cada semana de shows há sempre um primeiro grande briefing para os comentadores. Os responsáveis da EBU e da produção, os que criaram o show, a equipa de áudio, as forças de saúde e segurança, falam, explicando cada qual o que ia acontecer e o que deveríamos fazer (aqui sobretudo quanto às questões técnicas das cabines e consolas e regras de segurança). Perguntei quais eram as regras para uso de máscara dentro da Ahoy Arena. E explicaram que, dentro das instalações de trabalho o uso era sempre obrigatório, com apenas exceções para comer e beber ou quando se estivesse sentado. Sentado? Sim sentados podíamos estar sem máscara… Mas a maioria optou por mantê-la, mesmo estando tudo testado… Na plateia, na arena, a regra era a mesma. Para andar até ao lugar, ir a uma casa de banho ou a um dos bares (e estavam abertos), a máscara era obrigatória. Mas quem se sentasse no lugar designado pelo bilhete poderia tirá-la. Resta dizer que todos os que compraram bilhete tiveram de apresentar um teste negativo feito nas últimas 24 horas. E depois do tranquilo ensaio da tarde, só com imprensa, comentadores, staff e artistas na sala, a noite mostrou um cenário ao qual já não estava habituado. Uma multidão de 3500 pessoas. Juntas. Numa sala. Sem máscara… Eu e o José Carlos Malato (meu parceiro na “casinha” dos comentários), assim como a Carla Bugalho (Head of Delegation, ou “cabeça de uma delegação” como lhe chamavam os Black Mamba) e a Maria Ferreira (Heaf of Press, ou “cabeça de uma imprensa”), olhámos uns para os outros, respirámos fundo… e lá foi disto. Assim se fez o jury show. No dia seguinte o family show de tarde e o show em direto repetiam o cenário de casa cheia. Mas já nos tínhamos habituado. Ia correr bem. E assim foi.
Quarta feira acordou-nos com novo teste. “Negatief”… E com a entrada de toda a delegação portuguesa na arena, já que era dia de primeiros ensaios para segunda semifinal. Camarim número 12… Se na segunda e terça tinha vivido as horas entre a cabine de comentários, a sala dos comentadores (enorme, espaçosa), ali reencontrando alguns amigos e companheiros de trabalho de anos anteriores, desta vez ia passar mais tempo na “bubble”… Oportunidade para encontrar mais amigos, feitos ao longo dos anos, nas delegações de Itália, Grécia, São Marino, Bulgária, Israel, Moldávia, Suécia, entre outras mais… E para trocar primeiras palavras com os concorrentes deste ano. Entre eles falei logo nesse dia com os belgas Hooverphonic e os italianos Maneskin (que estavam ali para dar entrevistas e, como sempre, impecavelmente vestidos). Os dias de trabalho eram semelhantes aos vividos segunda e terça, mas com o valor acrescentado de Portugal estar a lutar pelo apuramento para a final… E uns atrás de outros não faltaram comentadores de outros países a elogiar as qualidades da canção portuguesa e a voz de Tatanka. O mesmo acontecendo entre outros elementos das delegações com que me ia cruzando. Falavam da “verdade” que havia na canção. Do seu apelo clássico. Da voz segura… Não sentia uma “boa onda” tão evidente em relação a uma canção portuguesa desde Kiev.
A cada ensaio os Black Mamba mostraram-se irrepreensíveis. Cada atuação era perfeita na voz e nos movimentos. E na noite de quinta (embora só tivéssemos depois a confirmação já no domingo), não só a canção portuguesa foi apurada como terminou a semifinal em quarto lugar. Felicidade absoluta ao fim da noite, com a delegação eslovena (cuja canção fora eliminada na terça) a receber-nos satisfeita no regresso ao hotel.
Se os quatro dias das maratonas das semifinais são intensos, nos dois dedicados à final a coisa sobe ainda mais uns patamares. Novo teste na manhã de sexta. Na verdade dois, já que um deles era um PCR para apresentar no aeroporto (que, ao contrário do de Lisboa, exigiu a apresentação dos resultados). Tudo “negatief”… E naquela manhã de sexta a “bubble” estava já na sua capacidade máxima. Agora eram 26 os camarins ocupados, com as respetivas delegações a habitar o grande espaço. Mais encontros com artistas. E momentos de boa disposição com Christer Björkman, naquela que foi a sua última Eurovisão “europeia”, já que parte para criar a “americana” em 2022… Dos artistas deste ano gostei sobretudo de conhecer a russa Manizha e a sua equipa. Foram os concorrentes com quem mais troquei ideias (coisa que ainda continua, agora já à distância). O ensaio da tarde de sexta, o jury show e o family show passaram a correr. E o direto da grande final juntou finalmente às canções e aos acts não competitivos a emoção da votação. Muitos pontos para Portugal, sobretudo pelos júris profissionais (uma validação multinacional para a canção ficou mais do que evidente). Confesso que não me surpreendeu a vitória italiana (já o esperava desde que vira o seu primeiro ensaio). Mas gostei sobretudo da diversidade expressa no Top 5. Além do glam rock com design italiano dos Maneskin ali ficaram as belas baladas (muito bem cantadas) da França e Suíça, a pop mais gourmet da Islândia (se bem que a canção de 2020 fosse melhor) e a visão folk virada para o futuro eletrónico da Ucrânia que gerou um dos momentos mais eletrizantes vividos entre quem enchia a arena. Esta última canção e Russian Woman, da Rússia eram, de resto, as minhas preferidas. Quatro línguas diferentes num Top 5 também com diversidade de formas musicais. E, depois, as canções de “fórmula” menos celebradas pelas votações, como que a sugerir que esse ciclo, que dura há uns anos, se calhar, está a fechar-se para que outro novo entre em cena. Afinal, sempre foi assim que evoluiu a história da(s) música(s) na Eurovisão. O próprio 12º lugar de Portugal, com os Black Mamba a igualar as classificações de Eduardo Nascimento em 1967, Carlos do Carmo em 1976 e dos Alma Lusa em 1998, acentuava expressões de um gosto que as votações mostraram que pode estar a mudar… O 12º lugar de Love is On My Side representa ainda o melhor resultado português depois de 1996 salvo, claro está, a vitória alcançada pelos irmãos Sobral em 2017. Agora não era má ideia sublinhar que este foi um 12º lugar em 39 canções… O que, comparando com as 18 de 1976, por exemplo, corresponderia a um sexto… Coisas dos números, é certo. Mas que ajudam a perceber o resultado bem significativo conquistado por Love Is On My Side. Correu tudo bem. Sim. De facto assim foi. – N.G.
