Este é o número 44 da lista “100 Discos Daqueles que Raramente Aparecem nas Listas”… Foi editado em 1973 e traduz um episódio em que Caetano Veloso mergulhou nas entranhas da música exploratória mas sem perder o pulso da sua identidade. Texto: Nuno Galopim

Em janeiro de 1972 Caetano Veloso regressou ao Brasil ao cabo de um exílio vivido em Londres do qual o mais recente legado eram então as fitas de um novo álbum que gravara nos Chapell’s Studios na companhia de uma série de músicos brasileiros que ali se tinham deslocado expressamente para o ajudar a dar forma a esse projeto em tudo memorável, do alinhamento bilingue à capa que apresentava uma desafio tridimensional. Diferente do caldo de influências mais claramente captadas na cultura pop/rock que tinham emergido em outras criações da fase passada em Londres (e vale a pena reencontrar o seu álbum de 1969 para sentir ali ecos uma visão londrina algo pop carregada pela melancolia da diáspora), Transa vivia mais intensamente o desejo do desafio e acabou mesmo reconhecido como não só um dos melhores discos de Caetano Veloso como um dos maiores da história da música brasileira. Caberia contudo ao disco seguinte, gravado já depois do regresso ao Brasil, o desafio de levar ainda mais longe um desejo exploratório que, assim, acabou por permitir fixar na discografia do músico o invulgarmente vasto espectro de formas e géneros que a sua visão absorvia e podia, depois, traduzir.
Araçá Azul é talvez o mais desafiante e atípico dos álbuns de Caetano Veloso. Foi gravado durante uma semana de imersão do músico nas possibilidades de trabalho que lhe foram proporcionadas no estúdio Eldorado, em São Paulo. Compositor, intérprete e também maestro dos acontecimentos que ali ganharam forma, Caetano trabalhou sobretudo sozinho, acompanhado pelo técnico de som. E criou uma série de peças que transcendem a forma da canção então já explorada nos seus discos, propondo antes uma sucessão de acontecimentos que, além do que possam ser relacionamentos com visões da música experimental dos anos 60, não deixa de refletir uma ideia de relação dos acontecimentos sonoros com os corpos e os espaços que o teatro (também experimental) então explorava. Tudo isto, claro está, como ideia musical que nasce das possibilidades técnicas em jogo (da gravação à mistura e outras formas de ação sobre as fitas), sublinhando este disco o poder do próprio estúdio como ferramenta de criação musical.
Com um alinhamento que sabe surpreender e ser (inteligentemente) desconcertante, Araçá Azul cria um percurso que sublinha não só a exploração das ideias lançadas como a possibilidade de contrastes com formas mais “familiares”. E um dos momentos de contraste surge numa leitura de Tu Me Acostumbraste que, de certa forma, acaba por lançar aqui bases para caminhos futuros da música de Caetano Veloso. A vertigem experimental que domina o disco não se esgota contudo no trabalho de composição, gravação e moldagem em estúdio e vive igualmente a relação com as palavras, como se pode escutar em Gilberto Misterioso, ou com a voz, como escutamos em De Palavra em Palavra. Ecos das vivências de uma música elétrica que tinham marcado a etapa londrina surgem depois no fulgor do som das guitarras que animam De Cara / Eu Quero Essa Mulher. Já a expressão de busca de uma identidade de raiz brasileira aflora em Sugar Cane Fields Forever, que desenha logo a seguir, no alinhamento, mais um exemplo dos jogos de contrastes que aqui se manifestam. Épico traduz depois o modo como um arranjo rico em timbres pode definir uma noção de espaço na música. E entre tamanha dimensão exploratória, as formas mais “acessíveis” de Julia/Moreno lançam pistas sobre o que seriam rumos seguintes na obra de Caetano.
Editado em inícios de 1973, o disco gerou um caso de rejeição entre muitos que, tendo comprado o disco sem o conhecer – porque era um novo álbum de Caetano Veloso -, acabaram por regressar às lojas e exigir a sua devolução. E foram tantas as devoluções que não há texto sobre Araçá Azul que não deixe de as referir. O álbum acabou por ficar fora de catálogo durante anos a fio, sendo apenas novamente disponibilizado em 1987. Hoje não só é uma bela manifestação da amplitude invulgar dos espaços musicais abordados pela discografia de Caetano Veloso como serve de exemplo a incursões pelos terrenos da música exploratória por parte de figuras com obra essencialmente construída nos domínios da música popular.