Este é o número 46 da lista “100 Discos Daqueles que Raramente Aparecem nas Listas”… Foi editado em 1974 e junta Ravi Shankar e George Harrison num encontro entre o ocidente e o oriente no qual se transcenderam também as noções de género musical. Texto: Nuno Galopim

O mais novo dos sete filhos de um advogado e político e da filha de um proprietário de terrenos em volta de uma aldeia, o pequeno Ravindra Shankar despertou cedo para as artes performativas e para a música. E passou parte da juventude com uma companhia de dança, com a qual viajou à Europa e América nos anos 30, surgindo aí os primeiros sinais de ligação com a cultura ocidental. Simplificou o nome (passou a ser conhecido como Ravi), descobriu a música clássica ocidental, o jazz e aprendeu francês. Estudou música clássica indiana com um dos grandes mestres daquele tempo. E em meados dos anos 40 estava já a tocar em público, começando então também a gravar discos (os primeiros, entre 1948 e 49, ainda no formato de 78 rotações). Pouco depois começa a colaborar no cinema assinando a música para Pather Panchali (1955) e os dois filmes seguintes que completam a Trilogia de Apu, de Satyajit Ray, títulos marcantes na história do cinema indiano.
De regresso à Europa gravou em Londres, em 1956, o seu primeiro álbum. Com o título Music of India – Three Classic Ragas on Sitar, o disco foi lançado pela HMV, conhecendo mais tarde novas edições com capa diferente, apresentando o LP apenas como Three Ragas. Esta gravação levou a sua música mais longe. A sua a e a da Índia, abrindo novas frentes de atenção não apenas para o som do sitar (o seu instrumento de referência) e as próprias formas musicais (o dicionário New Grove explica que a contribuição de Ravi Skankar para a história da música indiana implica a criação de novas abordagens a formas clássicas, sobretudo as propostas de ciclos rítmicos menos convencionais). E em apenas três anos deu por si a gravar para a World Pacific Records, que não só foi a casa de alguns dos seus lançamentos nos anos 50 e 60, como a porta para que o gosto (e a curiosidade) em dialogar com outras músicas encaminhasse definitivamente Ravi Shankar entre as rotas e destinos de vários grandes músicos do seu tempo, desde os espaços da música clássica ocidental aos da cultura pop/rock.
No final dos anos 60 a música de Ravi Shankar começou a chegar aos palcos dos grandes concertos e festivais de rock. A sua atuação num teatro em São Francisco, em 1967, gerou um disco ao vivo. Mas mais marcante ainda foi Ravi Shankar at The Monterey International Pop Festival, disco (também) ao vivo que leva a sua música à tabela dos álbuns mais vendidos nos EUA. Dois anos depois uma outra atuação sua fez história no Festival de Woodstock. Rickard Bock, da World Pacific Records foi então o responsável pela apresentação da música de Ravi Shankar aos Byrds e estes, por sua vez, levaram-na a George Harrisson, dos Beatles. E a partir de Norwegian Wood (This Bird Has Flown) começa a ser notória uma curiosidade pela música indiana entre as canções dos fab four, definindo um espaço de exploração que alcançaria depois o seu momento maior em The Inner Light, em 1968). George Harrisson trabalhou em várias ocasiões com Ravi Shankar. Produziu, por exemplo, a banda sonora do documentário Raga ou no EP Joi Bangala, ambos em 1971, o ano do célebre concerto pelo Bangladesh no qual ambos colaboraram. Mas entre a história de parcerias entre Ravi Shankar e George Harrison destaca-se um álbum no qual, inesperadamente, o músico indiano deu por si a compor uma canção… pop.
Editado em 1974 sob o título Sankar Family and Friend, o disco nasceu de uma série de gravações realizadas entre 1973 e 74 em Los Angeles e Oxfordshire, juntando familiares e amigos numa aventura comum. O lado A é feito de canções, a primeira das quais é I Am Missing You, a belíssima criação “pop” de Ravi Shankar, cantada pela sua cunhada Lakshmi Shankar. George Harrison, que produziu o disco, gostou tanto da canção que ele mesmo resolveu criar um arranjo diferente, surgindo ambas nesta face do álbum, partilhando-as com outras canções, uma delas procurando uma abordagem diferente a uma antiga canção folk indiana. Na face B do disco a proposta é diferente, sugerindo espaços de reflexão em torno de alguns espaços, incluindo os da música repetitiva ou do jazz, revelando assim a rara amplitude dos olhares e interesses de Ravi Shankar. As peças reunidas no lado B seguem um percurso narrativo desde logo sugerido pelo título Dream, Nightmare & Dawn e correspondiam a uma proposta de música para um bailado.
A “família” de músicos aqui reunida desenhava desde logo o encontro entre o ocidente e o oriente que estava na base da ideia deste álbum, juntando por um lado nomes ligados ao universo dos Beatles como Ring Starr, Billy Preston ou Klaus Voorman, a Shivkumar Sharma e outros mais músicos indianos que se reuniam assim num espaço comum que derrubava as mais tradicionais noções de fronteira entre géneros musicais. O disco surgiu como um dos primeiros lançamentos do catálogo da Dark Horse, a editora então criada por George Harrison.