
Nos tempos de um Portugal muito diferente viveu os primeiros anos – os da descoberta do mundo – em Nova Iorque. Nos dias de juventude somou experiências em Paris, Londres e teve uma banda na Suécia. E quando, na aurora dos anos 80, uma movida transformou a noite de Lisboa e criou alicerces para a criação de novas formas de expressão, Ana Monteiro, então já conhecida como Anamar, foi um dos rostos de uma cidade que se transformava. Passou pela porta do Frágil, que era um dos mais importantes polos de toda essa movida que rapidamente ligou gente das artes, da moda, da comunicação. Fez cinema. E aquele look de diva do ecrã, com algo hollywoodesco clássico, pelo que não faltaram comparações a uma Rita Hayworth, assim como a personagem que ela mesmo foi moldando, acabaram por ter como expressão maior um percurso na música que começou por associá-la às duas mais importantes editoras independentes que então surgiram em Lisboa, acabando depois, na reta final dos anos 80, por viver um período de ligação à PolyGram, editora para a qual lançou dois álbuns, o primeiro deles Almanave, uma das pérolas mais belas e mais esquecidas de uma visão “alternativa” que então nasceu como fruto direto das transformações numa cidade que descobria finalmente a pujança de uma cultura “jovem” e aprendia a ser cosmopolita e ousada.
Depois de ter editado em 1983 o single Baile Final pela Fundação Atlântica – e deixado na gaveta um álbum gravado, mas nunca editado, com canções de Miguel Esteves Cardoso e Pedro Ayres Magalhães –, ao qual se seguiu o EP Amar Por Amar (na altura dizia-se apenas máxi, referindo-se o formato de doze polegadas do disco), que lançou pela Ama Romanta em 1987, eis que o desafio de voltar a estúdio para criar um novo ciclo de canções ganhou forma e com final feliz. Sobretudo lembrado pela versão (nada canónica) da Canção do Mar, que abre o alinhamento, mas juntando depois um alinhamento que desenha um ambiente desafiante, para alguns talvez exótico, mas no mínimo sempre envolvente, no qual Anamar alia uma teatralidade que lhe era natural a uma voz mais focada na expressão de uma identidade do que com desejo de ir atrás de modelos e paradigmas de terceiros. É essa força primordial, que está tanto no canto como em composições e arranjos que transcendem os limites habituais dos géneros e geografias da música, respirando liberdades que ora são fadistas ora mouriscas, ora pop ora coisa (saudavelmente) inclassificável, que faz de Almanave um disco ao mesmo tempo encantador e audaz (quem não conhece escute esse momento maior que surge em Tudo Dar, canção que encerra o lado B). E vale a pena lembrar que Almanave nasceu no mesmo ano que viu chegar às lojas Free Pop dos Pop Dell’Arte ou Coisas Que Fascinam dos Mler Ife Dada, expressões de uma vitalidade pop destemida que então borbulhava por estes lados e que, no fundo, partilha terreno com a própria emergência dos Madredeus, que nesse mesmo ano apresentam o seu disco de estreia… Que ano este foi na história da música portuguesa!
Para criar Almanave Anamar voltou a chamar Emanuel Ramalho – com quem já colaborara no EP Amar Por Amar – que aqui partilha a produção com Jorge Barata. Nuno Rebelo (então nos Mler Ife Dada) assina algumas das composições e arranjos, em alguns casos em parceria com Emanuel Ramalho. Anamar escreve grande parte das letras. Mas depois chama palavras de Fernando Pessoa a Ana, Ai Maria, sobre um tema musical popular. Também de origem popular, Maçadeiras reforça o sentido de liberdade na busca de fontes e de inspiração que não se fecha nem na cidade nem no presente. Canta por isso Frederico de Brito e Ferrer Trindade na Canção do Mar. E Frederico Valério (música) e Silva Tavares em Sabe-se Lá. Estes diálogos entre passado e presente, entre fado e pop, entre ecos de outras culturas e lugares e uma música urbana moderna ocidental, fazem de Almanave um espaço de encontros moldado pela personalidade de uma voz. A experiência teve continuidade imediata em Feiabonita, que a PolyGram lançou dois anos depois. Houve mais discos, mas noutras editoras e com grandes hiatos entre si… Estes dois, particularmente Almanave, traduzem retratos de um tempo de aventura e transformação. Ajudam a contar a história de uma cidade animada por um novo sentido de liberdade e de descoberta… Estranho por isso o facto de Almanave nunca ter conhecido uma edição em CD (apesar de ter merecido da editora Universal uma recente reedição em vinil).