Dez anos depois do seu mais recente álbum de estúdio a solo, o regresso de Marisa Monte aos discos faz-se com o clássico e elegante “Portas”, disco onde reencontra vários colaboradores e nos dá uma das suas mais inspiradas e belas coleções de canções. Texto: Nuno Galopim

Há momentos em que o silêncio de anos a fio se interrompe e a surpresa acontece… Assim foi com Marisa Monte na última semana. É verdade que a tínhamos escutado em 2017 num segundo álbum do projeto Tribalistas, ao qual se seguiu uma digressão (e um registo captado ao vivo). Mas há dez anos que não a escutávamos num disco apenas seu, já que o mais recente O Que Você Quer Saber de Verdade data do (algo) longínquo 2011… O regresso estava, contudo, a ser preparado para depois de cumprida nova etapa de vida entre os Tribalistas. Havia estúdio marcado para maio de 2020 e uma série de novas canções que tinham nascido nos últimos anos, algumas entre colaborações com diversos parceiros. Mas, tal como o fez a todos nós, o ano de 2020 deu as voltas ao mundo de Marisa Monte. Mesmo assim a cantora decidiu não deixar de avançar, mesmo implicando novos modos de trabalhar, ora em estúdio no Rio de Janeiro (entre medidas de segurança) ora à distância, via zoom, com ligações feiras ora para Nova Iorque (onde estava Arto Lindsay) ora para Lisboa (aí chamando Marcelo Camelo) e outras mais cidades, onde quer que se encontrassem aqueles com quem queria gravar… Abriram-se possibilidades e a música fluiu… E dessas janelas de oportunidade acabou por nascer Portas, álbum que representa não apenas um reencontro com a voz e a personalidade de Marisa Monte, mas também espaço de forças e energias positivas, mais necessárias do que nunca no momento em que vivemos.
Em primeiro lugar as canções. Não que alguma vez tenham sido menores em qualquer álbum de Marisa Monte. Mas em Portas o calibre do conjunto reencontra o patamar de excelência de álbuns marcantes como Verde Anil Amarelo Cor de Rosa e Carvão (1994) ou Memórias, Crônicas e Declarações de Amor (2000). São inspiradas, com arranjos sóbrios, que valorizam a diversidade dos caminhos seguidos e a versatilidade de uma das mais belas vozes da música brasileira do nosso tempo. A tudo isto vale a pena acrescentar que não parece querer Portas procurar novos desafios plásticos nem revoluções. As referências são clássicas tanto nos universos da música brasileira como nos do próprio percurso de Marisa Monte. Mas a excelência aqui exposta é apenas mais um belo exemplo como nem sempre é preciso inventar novos rumos nos planos da demanda estética para criar algo novo absolutamente sedutor. O classicismo e a elegância de Portas não sabem, todavia, a nostalgia. Pelo contrário, as canções assinalam, cientes do presente, um episódio de reafirmação de valores numa das mais inspiradas obras da canção brasileira. E celebram igualmente o gosto pela colaboração, chamando a bordo não apenas os dois parceiros já acima citados, como outros habitués como Carlinhos Brown ou Arnaldo Antunes. A boa “velha” guarda de Marisa Monte continua em forma.
Portas é um álbum que traduz o tempo em que nasceu. É um disco dos dias de confinamento. Ainda por cima nascido no Brasil, onde se vivem há meses tempos de evidente cenário de catástrofe. Mas ao invés de outros discos que refletiram sobretudo sobre solidão, distanciamento, o álbum de Marisa Monte procura estabelecer outras ligações não apenas na relação da cantora com o seu mundo interior como entre ela, os seus colaboradores e o mundo que agora a pode escutar. É um disco de esperança, otimista. Está ciente do presente, mas prefere encarar um futuro com a luz e a cor que a capa desde logo sugere. Escolheu abrir uma porta… E parece que escolheu a porta certa.
Para já Portas existe apenas numa edição digital. É uma forma de escutar as canções tão válida quanto qualquer outra… Mas não era má ideia começar a falar de edições em suportes físicos. E se o álbum de 1994 conheceu no ano passado uma reedição em vinil, na verdade desde o mais distante Mais, há já 30 anos, para encontrar um disco de Marisa Monte com edição em vinil por alturas do seu lançamento original. Já era altura de restaurar esse bom velho hábito.
“Portas”, de Marisa Monte, está disponível nas plataformas digitais numa edição da Phonomotor