Este é o número 47 da lista “100 Discos Daqueles que Raramente Aparecem nas Listas”… Foi editado em 1975 e representou, depois de uma importante etapa vivida entre os Secos & Molhados, a estreia a solo de Ney Matogrosso. Texto: Nuno Galopim

Depois de um envolvimento relativamente tardio com a música (enquanto saída profissional), e tendo entretanto afirmado já a criação de um espaço artístico seu através da sua presença na etapa inicial de vida dos Secos & Molhados – pelos quais gravou dois álbuns absolutamente marcantes entre 1973 e 74 – Ney Matogrosso deu o primeiro passo num percurso discográfico a solo precisamente depois de separado o trio que assinalara momentos musical, lírica e performativamente subversivos que acrescentaram valores, visões e possibilidades à construção de novas identidades no espaço da música brasileira. Um ano depois de um segundo álbum editado pelos Secos & Molhados (que não conseguiu o mesmo impacte do primeiro, embora esteja longe de ser um feito menor), Ney Matogrosso levava consigo para a sua estreia a solo algumas heranças diretas do trabalho que então tinha partilhado com João Ricardo e Gerson Conrad, ou seja, um gosto em explorar caminhos que partiam de estéticas em vigor nos planos do rock de então, mas que abriam horizontes para descobrir não apenas o quando, o onde e o como do Brasil de então, mas também a força maior do “quem” que dava voz à música.
A capa (impressa em papelão) do álbum de estreia de Ney Matogrosso é desde logo um programa que tanto mostra heranças diretas da etapa anterior como lança caminhos que o próprio continuaria depois a explorar. Tribalismo, ligações a verdades ancestrais daqueles lugares, demandas interiores e a capacidade em dialogar com várias frentes da invenção estética de então, com pistas lançadas por autores diferentes (entre os quais Milton Nascimento ou João Bosco), juntaram em Água do Céu – Pássaro os elementos certos para que um caminho progressivamente mais demarcado e pessoal se começasse a desenhar daqui em diante.
Mas convenhamos que logo aqui, neste momento de “Ipiranga” a 33 rotações por minuto, já encontramos em Ney Matogrosso uma voz entregue a um caminho seu. Sons de selva (num trabalho de sonoplastia que sabe encenar o espaço) abrem um alinhamento, que logo nos coloca perante o fulgor de uma voz que nos canta, num grito visceral… “eu sou o homem de neanderthal”… A canção Homem de Neanderthal, de facto, não deixa ninguém indiferente, assimilando uma lógica com afinidades com o rock progressivo e mais experimental então em voga em algumas frentes da invenção. Mas desde logo deixava claras as marcas de personalidade e identidade de quem se apresentava (o que a letra de resto sublinhava). Ao prog juntam-se ecos do psicadelismo, aventuras de maior lirismo, flirts jazzy, uma versão (magnífica) de Mãe Preta (que, entretanto, Amália tinha celebrizado como Barco Negro) e um episódio de fulgor político maior em América do Sul, talvez a canção do álbum que mais seguramente venceu os desafios do tempo.
Com edição original no Brasil em 1975 (que incluía um single de sete polegadas como bónus) e igualmente lançado em Portugal por esses dias, Água do Céu – Pássaro teve uma edição em CD já depois da viragem do século mas, apesar das recentes reedições em vinil dos dois primeiros álbuns dos Secos & Molhados, ainda não conheceu noca vida em vinil. O facto de não ter sido um êxito comercial significativo quando surgiu originalmente faz das edições em vinil da época peças desejadas por colecionadores. Mas a excelência do álbum já justificava uma reedição que o torne mais “acessível”… Vá lá que se pode escutar nas plataformas digitais. E vale a pena (re)encontrar a voz de Ney Matogrosso num momento em que a sua música está mais próxima de um espaço rock experimental do que dos caminhos (não menos interessantes, claro) da MPB que outros discos depois explorariam.