John Grant reencontra caminhos mais inspirados para as suas reflexões e memórias

Gravado na Islândia, na companhia de Cate Le Bon, num período de confinamento, o quinto álbum de John Grant parece ser finalmente o sucessor (de vistas largas) das pistas experimentadas no soberbo “Pale Green Ghosts”, o seu melhor disco. Texto: Nuno Galopim

Conhecemo-lo a bordo dos The Czars, banda de Denver (Colorado) que, entre 1996 e 2009 editou uma sequência de álbuns nos quais revelavam um gosto pela canção talhada com eloquência (por vezes quase) sinfonista… Foi uma etapa de carreira injustamente ignorada, acrescente-se, com momento maior (a recuperar um dia, quem sabe) no álbum de 2001 The Ugly People Vs The Beautiful People. Mas convenhamos que esses foram tudo menos dias luminosos no próprio quotidiano do músico, pelo que um reencontro com esse passado não sei se estará no seu mapa de desejos… Em 2010 estreou-se a solo com o belíssimo Queen Of Denmark, disco no qual contava com a colaboração dos elementos dos Midlake (em cujo estúdio de resto o disco foi gravado), e no qual manteve ainda evidente um relacionamento com as formas e os sons que antes explorara nos Czars.

Espírito assombrado, vivera em tempos sob o fardo de uma sensação de alienação face aos outros e em particular à família religiosa na qual nasceu (no Michigan). A alma torturada, que fora já antes cantada em magníficas composições dos The Czars, conhecia contudo, nesse primeiro disco a solo, primeiros sinais de libertação rumo a outros lugares. Uma libertação que física, temática e musicalmente, alcançaria um novo lugar em 2013 em Pale Green Ghosts, segundo álbum a solo no qual a entrada em cena de eletrónicas, a descoberta de nova vida na Islândia, onde ainda hoje reside. E ali a abertura a outros temas e palavras (mais íntimas, mas mais frontais do que nunca) resolvia-se num alinhamento que nos deu aquele que, até agora, é o melhor álbum da sua discografia.

O encontrar de um caminho teve consequência direta nos passos seguintes. Depois de um registo ao vivo com orquestra (editado em 2014) o álbum de 2015 Grey Tickles, Black Pressure não mostrou sinais de vontade maior em partir para outros lugares, apostando o seguinte, Love Is Magic (de 2018) numa relação mais próxima com as eletrónicas… Confesso que, sobretudo depois destes discos de 2015 e 2018, interessantes, mas longe de arrebatadores como o tinham sido os dois primeiros editados a solo, não era “entusiasmo” a palavra que mais rapidamente enunciaria perante a notícia de um novo álbum de John Grant. Nunca o deixaria de escutar, claro. Pelo que, mal Boy From Michigan deu à costa, tratei de o escutar, terminando a primeira audição absolutamente rendido. Estava ali um disco com o calibre dos que tinham lançado a sua obra a solo. Pela relação mais aberta a uma diversidade de formas (da balada sumptuosa que a sua voz tão bem sabe abordar, à canção eletronicamente mais ritmada), pela amplitude dos timbres convocados e, sobretudo, pelo reencontrar de uma certa melancolia (embora não assombrada), senti aqui, mais do que nunca, afinidades com os terrenos que John Grant começara a desbravar quando chegou à Islândia. De certa forma, e mais do que os dois discos imediatamente anteriores a Boy From Michigan, este é o mais direto sucessor de Pale Green Ghosts… É claro que corri a comprar a edição em vinil.

Boy From Michigan tem com Pale Green Ghosts um inesperado elemento em comum: foi gravado na Islândia. Mas a opção foi mais consequência do contexto do que talvez uma decisão pré-determinada. Cate Le Bom estava na Islândia para algumas parcerias em palco com John Grant quando a pandemia chegou e tudo fechou. Apanhados de surpresa deram por si com tempo pela frente. E, juntos, num estúdio, começaram a trabalhar num disco que observa sobretudo memórias remotas da vida do próprio John Grant, deixando para um (longo) momento perto do final do alinhamento um episódio de reflexão crítica de mais de 9 minutos sobre a América de Trump.

Se o tom autobiográfico das palavras corresponde a um espaço a que nos habituámos já na música de John Grant, musicalmente é nas soluções instrumentais, mais até que no plano da composição, que o músico aqui se desafia (e nos surpreende). A mesma carga de referências que olham para trás, mas de corpo e pontos de vista firmes no presente, e que definem os temas abordados e palavras que os apresentam passa por atitudes semelhantes nas demandas musicais, que ora piscam o olho a heranças de uns Kraftwerk (em Best In Me) ou da new wave (em Rhetorical Figure, de resto, um dos instantes mais inesperados do disco). E resto, a entrada (pausada) na faixa de abertura, com o que às tantas quase parece ser um instrumental para sintetixadores, serve de entrada a um mundo de boas surpresas que se desvendam nos seguintes 75 minutos. Longo o disco, sim, é verdade. Mas em tudo recompensador da atenção que lhe possamos dar.

“Boy From Michigan”, de John Grant, está disponível em 2LP e CD e também nas plataformas digitais, numa edição da Partisan Records/Bella Union

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