Editado em 1999, com uma nova formação à qual se juntavam dois dos fundadores da ZTT Records, o álbum dos Art of Noise “The Seduction of Claude Debussy” não só propunha um biopic como uma reflexão sobre a ideia de fim de século. Texto: Nuno Galopim

Uma das forças maiores na expressão de novas visões nascidas de berço na cultura pop, explorando outras ferramentas ao serviço da linguagem, uma visão que transcendia as formas da canção pop e uma ambição de alma sinfonista – que partia de uma política sofisticada de produção como uma das marcas de identidade – fez dos Art of Noise um dos projetos mais interessantes que a música feita essencialmente (mas não só) com ferramentas electrónicas nos deu a conhecer nos anos 80.
Pela visão expressa entre discos como o EP de 1983 Into Battle ou o álbum de 1984 Who’s Afraid of The Art of Noise (uma das obras-primas da pop não pop dos oitentas) foram de certa forma – e antes mesmo do impacte dos Frankie Goes to Hollywood – os autores da declaração de princípios musicais, visuais e de comunicação que colou em cena a força invulgar da editora ZTT, que tinha por figuras centrais o músico e produtor Trevor Horn, a empresária Jill Sinclair e o jornalista Paul Morley. Ao conflito (e separação) com a ZTT pouco depois seguiu-se, então na China Records, uma sucessão de singles e álbuns que lhes valeram a manutenção de um perfil de grande visibilidade até 1988. As artes não foram contudo suficientes para resistir depois a uma sucessão de opções menos imaginativas que, por alturas do álbum Below The Waste (1989) os tinham afastado das atenções daqueles que ainda pouco antes os tomavam como peça fulcral do mapa dos sons pop mais visionários da época. Meteram baixa… Ou antes, um aparente ponto final. E retomaram a atividade em finais dos anos 90 com uma nova formação (onde entravam Trevor Horn, Paul Morley e Lol Creme, da banda original mantendo-se apenas Anne Dudley), dando-nos em The Seduction of Claude Debussy, lançado em 1999, um dos seus melhores discos.
Homenagem (em tudo justificada) a Claude Dubussy, nele apontando um exemplo daquela vertigem que tantas vezes vê a passagem do século como fronteira para um tempo novo, os Art of Noise projetavam ali a sua visão fin de siècle, num disco que, com narração de John Hurt, propunha uma ideia de biopic feito de música, ao mesmo tempo que encontrava uma nova materialização – pensada para 1999 – da identidade dos Art of Noise que, mais que nunca, vincavam a vontade de fazer a sua demanda além dos caminhos estritamente pop muitas vezes tomados por tantos outros utilizadores de electrónicas, estabelecendo por um lado evidentes pontes para com as heranças da música orquestral e instrumental (com Debussy naturalmente no horizonte) , por outro procurando diálogos com outras formas (entre elas, e pontualmente, o hip hop).
É a voz do ator John Hurt quem assume o papel do narrador. Conta-nos, logo nos primeiros instantes, que “quando Debussy morreu, a 25 de março de 1918, Paris estava a ser bombardeada pelos alemães. E estava a chover”… Ao longo do disco vamos encontrando, sem uma lógica narrativa necessariamente cronológica, ecos de memórias e factos da vida e marcas da personalidade do compositor. Mas, mais que um mero biopic, The Seduction of Claude Debussy sugere a acima citada metáfora sobre a ideia de passagem de século, recordando como, cem anos antes, também os sonhos e as dúvidas se acotovelavam a caminho de mais um 31 de dezembro.
A música cita elementos de obras de Debussy e do próprio passado dos Art of Noise, ao mesmo tempo que desenha, quadro após quadro, uma visão que passa pelo drum’n’bass, o downtempo, as estéticas ambient e mesmo a ecos da música pop. A voz da cantora lírica Sally Bradshaw partilha os momentos de protagonismo vocal com a postura mais pop de Donna Lewis ou o rap de Rakim (que faz rimas de palavras de Baudelaire).
O disco ficou contudo aquém do reconhecimento que merecia. O (relativo) insucesso de The Seduction of Claude Debussy talvez tenha ditado o segundo fim criativo dos Art of Noise, que chegou no ano 2000, depois de trabalhos feitos para as celebrações do milénio. Apesar de reunidos em 2013, sobretudo para atuações ao vivo – uma delas com orquestra – os Art of Noise não juntaram ainda mais nenhum disco de originais à sua discografia pós-1999. Os últimos anos têm, contudo, assistido a campanhas de reedição e até mesmo de lançamento de material de arquivo.
O disco existe apenas em edições nos formatos de CD e cassete… Ora num mundo tão cheio de reedições em vinil, e com tantos lançamentos do Record Store Day a evocar por vezes discos que já tiveram não sei quantas prensagens (frequentemente acrescentando a “novidade” – absolutamente dispensável – do vinil colorido), aqui está um álbum que poderia (finalmente) colher o merecido reconhecimento numa eventual nova vida em suporte de LP (certamente duplo dada a sua extensão).
É um bom disco, sim senhor. Mas a falta de reconhecimento (a nível crítico, pelo menos) não me surpreende. Em termos (muito) gerais, já estávamos noutra era e, parecendo que não, os Art of Noise, no que à “conversa” (uma forma tosca de traduzir aquela expressão anglossaxónica da conversation) dizia respeito, ainda estavam numa espécie de Terra de Ninguém. Se bem me lembro, o Who’s Afraid of ainda não era disco completamente consensual por essa altura, ao contrário do que aconteceria nem meia-década mais tarde, quando a herança do pós-punk começou a ser mais seriamente celebrada. E parece-me que os que ainda se lembravam deles ainda tinham na cabeça a tal “sucessão de opções menos imaginativas” – que, verdade se diga, começaram logo no In Visible Science.
Por isso, pesados os fatores, não me admira muito. Mas lá que é um disco bem À espera que o (re)descubram, lá isso é.
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Concordo! Também não me surpeendeu a falta de entusiasmo nos media… Devo ter sido dos poucos a ficar entusiasmado (na imprensa local, pelo menos).
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Lembrei-me agora que, três anos antes disto, os Prodigy tinham pegado na sucessão de Hey!” do “Close to the Edit” para a “Firestarter”. E, mesmo assim, isso não chegou para, logo naquele momento, os Art of Noise serem reabilitados para a “conversa”.
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Lembro-me de ter ouvido nos primeiros temas dos Art of Noise um tema muito instrumental que tinha lá pelo meio um “xao xao ta xao”. Se alguém souber qual é o tema? Desde disco lembro-me de ter gostado de um tema que ouvi na Antena 3 domingos à noite. Ouvi alguns dos outros temas mas já não gostei tanto.
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The Seduction of Claude Debussy – Il Pleure (At The Turn Of The Century) https://www.youtube.com/watch?v=gx89xah4T-M&list=PLdB2qly-JTgA1jPVerURehyKZ7ejdvTXu&index=14
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