Um ciclo de canções para retratar os tempos que estamos a viver

Nascido de um desafio para criar uma peça orquestral, transformado depois num ciclo de canções “The Nearer the Fountain, More Pure the Stream Flows” revela mais um momento de exceção na discografia de Damon Albarn, que desta vez assina a solo. Texto: Nuno Galopim

Apesar da multidão de projetos nos quais se tem envolvido – que vão dos Blur e Gorillaz aos The Good The Bad and The Queen, sem esquecer desafios assumidos no Mali e inúmeras colaborações ocasionais – Damon Albarn raras vezes assinou um disco com o seu próprio nome. Fê-lo pela primeira vez em 2012 ao assinar a ópera Dr. Dee e depois, em 2014, com o álbum de estúdio Everyday Robots. O novo The Nearer the Fountain, More Pure the Stream Flows, assim sendo, o seu terceiro disco em nome próprio (na verdade é o segundo álbum a solo, já que Dr Dee não costuma ser encarado desse modo), mostra contudo uma ideia que não corresponde exatamente a uma sucessão direta de Everyday Robots. É que, apesar de se apresentar sobretudo na forma de uma coleção de novas canções, The Nearer the Fountain, More Pure the Stream Flows, corresponde a um desfecho inesperado de um projeto diferente. Conceptual desde a ideia original até à sua forma final, o disco volta a vincar a sede de experimentação uma vertigem criativa que continua a animar a música de Damon Albarn. E, sob o velho mote “e agora algo completamente diferente”, eis que surge um dos mais cativantes discos de uma obra na qual não faltam momentos de alto calibre criativo.

O projeto nasceu de um desafio lançado por um festival em Lyon: criar uma obra orquestral. Damon Albarn rumou à Islândia e começou por olhar as nuvens que via para lá da janela do estúdio. Dessas primeiras observações a outras contemplações sobre a paisagem islandesa brotaram ideias que, contudo, ganhariam outro destino mais tarde quando, face à urgência sanitária que fechou o mundo em 2020, o músico deu por si a encontrar entre esta música cenários para palavras que então refletiam sobre isolamento e o estado de saúde cada vez mais preocupante do ambiente. Inspirado por um poema de John Clare chegou ao título The Nearer the Fountain, More Pure the Stream Flows… E todo um disco diferente – e inesperado face ao projeto inicial – assim nasceu.

Apesar do caminho diferente que a música tomou, as pistas lançadas pela composição orquestral não se dissiparam (de resto o maestro Andre de Ridder mantém-se na listagem de autores). Antes, serviram de palco para, sobretudo com as colaborações de Mike Smith e Simon Tong, ambos elementos da banda que dá materialidade física aos Gorillaz na estrada, o segundo integrando ainda os The Good The Bad and The Queen, lançarem metamorfoses que geraram canções nas quais o paisagismo e a melancolia que habitavam as pistas iniciais se aliaram à carga das palavras. Um ciclo de canções? Porque não? Se pela ordem instrumental e poética do seu tempo, os grandes ciclos de canções de Schubert ou Mahler assim são encarados, porque não pensarmos do mesmo modo para criações como esta que Damon Albarn nos dá a ouvir? Tal como um Songs From Liquid Days de um Philip Glass ou um He Poos Clouds de Owen Palett (quando ainda assinava como Final Fantasy), encaremos The Nearer the Fountain, More Pure the Stream Flows como um ciclo de canções para o nosso tempo. Conceito, caminhos na música e rumo nas palavras são evidentes. E, convenhamos, temos aqui, a juntar a Carnage de Nick Cave e Warren Ellis ou Suite: April 2020 de Brad Mehldau, mais uma peça maior na construção de um retrato dos tempos que o mundo está neste momento a viver.

The Nearer the Fountain, More Pure the Stream Flows”, de Damon Albarn, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais, numa edição da Transgressive.

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