Quatro décadas depois de um álbum de estreia que marcou a pop dos anos 80, Marc Almond e Dave Ball reencontram-se num disco sóbrio e discreto que em tudo traduz o sentido de verdade de um tempo que passou. – Texto: Nuno Galopim

Os regressos e reencontros tornaram-se norma, raros sendo os que têm conseguido capitalizar mais do que os encantamentos que os apetites da nostalgia tantas vezes brotam da saudade de velhos admiradores. Um regresso dos Soft Cell é tudo menos uma novidade ou surpresa. Apesar da rutura anunciada ainda antes da edição de This Last Night in Sodom de 1984, na verdade não passou uma eternidade até que os caminhos de Marc Almond e Dave Ball se voltassem a cruzar, primeiro numa colaboração (via The Grid) em Waifs and Strays de Marc Almond (a solo), pouco depois acabando mesmo por gerar um álbum de reencontro – Cruelty Without Beauty (2002) – e uma primeira digressão de reunião. Seguiram-se mais ocasiões de partilha de palcos, culminando com o mega-concerto de celebração dos 40 anos que, supostamente, era anunciado como o ponto final na vida a dois de Marc Almond e Dave Ball… Supostamente, claro… Até porque depois do concerto começaram a surgir notícias de novas canções que, entretanto, se foram materializando numa sequência de singles, o mais recente (Purple Zone) revelando uma colaboração – de veteranos – com os Pet Shop Boys. E agora, eis que ganha forma um novo álbum.
Com o título Happiness Not Included (que traduz desde logo o caráter cético com que desde sempre os Soft Cell olharam o mundo ao seu redor) o álbum não pretende nem ser uma atualização de ecos do passado da dupla nem procura buscar, como o fizera o visionário Non Stop Erotic Cabaret (1981), um caminho novo ou desafiante para a música, as formas e as narrativas. Pelo contrário, Happiness Not Included não esconde o tempo que passou, encontrando nesse sentido de verdade os alicerces para a construção de canções que ora traduzem o presente de Almond e Ball ora abrem ocasionalmente frestas em memórias (e nostalgias) como se escuta em Polaroid, onde evocam um encontro com Warhol no inícios dos oitentas.
A face nostálgica que cruza parte dos terrenos de Happiness Not Included está todavia mais relacionada com a partilha deste tipo de recordações ou com o inevitável arsenal de teclados analógicos de Dave Ball. Liberto das amarras da eventual necessidade de vincar a presença de uma “região demarcada” (talvez o calcanhar de Aquiles do álbum de 2003), o novo disco surge como expressão natural de um arco que o tempo naturalmente desenhou com ponto de partida entre os discos absolutamente marcantes que os Soft Cell lançaram entre 1980 e 84. As palavras traduzem ecos do presente sob um ponto de vista com afinidades naturais com aquele com o qual desenharam em tempos olhares sobre faces da sociedade e das atitudes que poucas vezes ganhavam voz em canções pop de grande visibilidade. O desencantamento ganha inclusivamente outra dimensão, como que a confirmar as suspeitas lançadas há 40 anos. Da capa que evoca a devastação em Chernobyl às desilusões que passam por um I’m Not a Friend of God encontramos aqui um herdeiro natural (e nada forçado) do que, apesar da luminosidade de algumas canções pop, sempre foi a alma assombrada dos Soft Cell.
É certo que Almond se afasta aqui dos caminhos da torch song e outros destinos mais frequentes na sua obra a solo. Mas ao voltar a juntar-se a Dave Ball acaba por encontrar um patamar natural para um diálogo que, mesmo com raízes em feitos conjuntos de há 40 anos, em nada procuram rotas de mimetismo ou mera atualização. Ei-los juntos, como o presente os apresenta. Juntos são, inevitavelmente, os Soft Cell. E mesmo sem replicar a excelência de um Non Stop Erotic Cabaret ou The Art Of Falling Appart (1983) Happiness Not Included reactiva de forma sóbria e elegante um legado único. Não se lhes pedia mais, convenhamos.
“Happiness Not Included”, dos Soft Cell, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais numa edição da BMG.