Os bilhetes dos concertos podem contar histórias

Tem por título “Eu Estive Lá” e apresenta uma coleção de bilhetes de concertos e festivais de música realizados entre nós desde meados dos anos 60. A ideia é de Henrique Amaro que aqui nos conta como destas memórias nasceu um livro.

Não basta haver uma boa ideia. É preciso saber concretizá-la. E é isso o que Henrique Amaro faz em Eu Estive Lá, um livro que junta memórias de muitos retângulos de papel através dos quais podemos contar histórias da música (sobretudo popular) que foi passando pelos nossos palcos. Retângulos de papel?Ö Sim, os bilhetes que (ainda hoje) dão acesso aos concertos, mas que antes da era digital ou da mera aplicação de informação (sem design) em folhas que podemos imprimir, podiam contar histórias. Histórias que vão dos meros sinais dos tempos a continuações de narrativas visuais ligadas a capas de discos ou imagens dos artistas, isto sem esquecer o prazer gráfico de criar logotipos ou identidades visuais a partir dos nomes de bandas ou de quem se apresentava a solo.

A ideia original foi do Henrique Amaro que, para o livro, chamou (para assinar os textos) as colaborações de Luis Pinheiro de Almeida, Ana Cristina Ferrão, Pedro Fradique e Isilda Sanches. Palavras e as fotografias de muitos bilhetes contam assim muitas histórias, que recuam a visitas dos Searchers ou dos Animals ao Monumental em 1965, Vilar de Mouros em 71 (e também 82) recordam os pavilhões de Cascais ou do Belenenses nos anos 70, o Rock Rendez Vous ou os Coliseus nos 80, passam pelos Rolling Stones ou David Bowie nos estádios da alvorada dos noventas, evocam a alvorada de uma nova era de festivais ou lembram passagens pela ZDB já depois da viragem do milénio. Cada um dará por si a lembrar não só estes nomes e lugares, mas também a identificar as ocasiões em que, tal como o título sugere, também lá esteveÖ

Mas para explicar melhor o que este livro nos conta, aqui ficam algumas respostas do Henrique 

Amaro a questões que lhe lançámos.

Como surgiu a ideia de juntar esta “coleção” de bilhetes? E como desenhaste depois on projeto de um livro?

A ideia surgiu pouco depois da experiência que tive com outro lançamento, o livro “111 discos portugueses – A música na rádio pública”. Nessa altura, cruzei-me com a minha pequena colecção e despertou-me a vontade de fazer algo com essa temática. Fiz alguma pesquisa na esperança de encontrar referências, e apenas encontrei edições que destacavam flyers, capas de discos, e alguma memorabilia. Assim, comecei a contactar amigos próximos que calculava terem esse hábito e a rede alargou-se. Comprei um scanner, comecei a digitalizar tudo o que recolhia, e 4 anos depois tinha cerca de 700 bilhetes.  A organização partiu de ideias básicas – no caso das bandas internacionais, dar prioridade às primeiras apresentações em nome próprio. Para os artistas portugueses, alargar a baliza temporal, e se possível, apresentar vários do mesmo artista em épocas diferentes. Quis apenas organizá-los no tempo e no espaço e desafiar testemunhas oculares para um texto livre sobre as décadas a que os bilhetes se referem. 

Costumavas guardar bilhetes? Quais são os mais antigos que tens?

Embora não tenha justificação do que me levou a esse hábito, sempre guardei bilhetes. Os primeiros concertos que vi  foram produções gratuitas sem comprovativo de presença. Da minha colecção, e não incluídos no livro tenho alguns do RRV em 85 e uma apresentação dos GNR na Aula Magna também nesse ano. O meu bilhete mais antigo incluído neste livro é o dos Xutos & Pontapés no RRV em 1986 que deu origem ao disco “1º de Agosto ao vivo no RRV”.

Como foste completando a representação deste “retrato” do que passou pelos nossos palcos através de bilhetes?

A contribuição das colecções particulares foi fundamental. Com essa imensidão de itens é que construí a narrativa. A ideia que tinha no inicio da história é dispare em relação à que tenho hoje. Embora exista uma tendência ancorada no pop rock, foi através dessa rede alargada de pessoas que cheguei à pluralidade que o livro exibe. Seja no género, espaço ou geografia.

Redescobriste, através dos bilhetes, concertos aos quais já nem te lembrasses que tinhas ido?

Nem tanto. A minha descoberta maior foi o que não vi. A cada lote que chegava, existiam alguns bilhetes que foram revelações e que me levaram a pesquisar um pouco mais, até para os conseguir localizar no tempo. Foi uma tarefa difícil, porque muitos não têm informação do ano,  do dia, ou até mesmo do espaço.

Que bilhetes são particularmente marcantes?

Vários. Pela distância no tempo,  e pelo contexto social e político, a maioria dos que aconteceram nas décadas de 60 e 70 são marcantes. A apresentação dos The Animals em 1965 no cinema Monumental ou do Conjunto João Paulo em 1966 são peças de colecção. Depois outros como o Festival Vilar de Mouros em 1971, os Genesis em 75, os Heróis do Mar a apresentarem o primeiro disco no RRV, o Keith Jarrett, a primeira apresentação dos Madredeus na Aula Magna (na altura, ainda designados de Os Dias da Madredeus), os Gun Club no Cinema Império. Enfim, são muitos e tenho dificuldade em classificá-los, até porque olho para estas páginas como algo muito indissociável de quem o folheia e o que aparenta ser vulgar para uns, foi transformador na vida de outros.

Sentes, também através desta coleção, sinais de evolução de uma cena local de concertos progressivamente mais profissionalizara? 

Isso é flagrante, mas tem de ser uma análise acompanhada pelo testemunho do que aconteceu nesses espectáculos. Os bilhetes são apenas indícios dessa constante evolução. Para um conhecimento complementar e aprofundado sobre esse processo, é necessário enumerar o aparecimento de produtoras, de técnicos especializados, da promoção, da relação com marcas, da relação com os media, das dimensões dos espaços, da relação com a indústria fonográfica,  da capacidade monetária dos portugueses, da criação de hábitos, da relação com autarquias, e todo um universo que cresceu, e do qual o bilhete é apenas um bilhete.

Que primeiras conclusões podemos tirar desta coleção? A relativamente magra agenda de concertos nos anos 70 (face ao que seria o cenário de outros países)? O ‘Boom’ de uma cultura juvenil nos anos 80…

O arco temporal exibido neste livro tem 60 anos, e é possível determinar ciclos com  características próprias ao longo do processo. Da precariedade à massificação. Em todos existem elementos que vão sendo adicionados e aperfeiçoados. A variedade da oferta é a mais visível, mas com ela surgem outras perspectivas. O pré e pós 25 de Abril é determinante, e numa segunda fase a entrada na comunidade europeia é outro sinal que me parece fundamental. Qualquer conclusão que se possa retirar ao analisar esta colecção é a forte ligação que existe com o contexto social e cultural do país e com a ousadia de algumas pessoas que olharam para a produção de espectáculos como forma de vida ou apenas como algo que tinha de ser concretizado sem objectivos profissionais. 

Podemos também, além da música, contemplar aqui uma história do design?

Esse é talvez um dos pontos que mais me entusiasma neste livro. Reparar como o design gráfico (ou a falta dele), se foi modelando ao longo dos anos. As primeiras expressões mais ousadas aparecem no final da década de 70,  e ganham novas soluções nas seguintes com a utilização da fotografia e do grafismo que remetia para os discos que seriam tocados no espectáculo. Muitas vezes é nas produções mais precárias que surgem as soluções gráficas mais inusitadas. Destaco um espectáculo na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa com a Sétima Legião, Urb e Croix Sainte, e outro do Sei Miguel que são, na minha perspectiva, dos mais bonitos. A dimensão do bilhete é também muito curiosa. O bilhete dos GNR no Coliseu dos Recreios, que serviu para a gravação do disco “In Vivo” é enorme e surge no livro em tamanho real, e os Ban na Estufa Fria, cuja dimensão se aproxima de um A4 e que surge aqui numa versão reduzida. Em paralelo, os bilhetes do Johnny Guitar ou da ZDB que são pequenas senhas com o nome do artista carimbado.

Quando começaram os bilhetes a perder a identidade que antes expressavam?

Nos últimos 15 anos com o aparecimento de novas soluções de bilhética e consequente transformação dos hábitos de compra, essa dita “identidade” perdeu-se.
No entanto, há 30 anos já existiam indícios que a normalização pudesse acontecer. A grande maioria dos palcos de estruturas institucionais e modernizadas como o CCB, o Teatro Municipal São Luiz ou a Gulbenkian, foram pioneiros na utilização de bilhetes onde a identidade gráfica é residual.

Esta é uma coleção que retrata um tempo. Ou seja, hoje não faria sentido juntar (pelo menos da mesma forma) este tipo de bilhetes. Isto faz-te pensar sobre o futuro de certo tipo de colecionismo numa era digital?

A era digital oferece várias soluções para fixar a memória e o colecionismo já acompanha esse novo paradigma. Neste caso, a impressão e o papel são fundamentais. Estes são retratos analógicos indissociáveis a este formato.  No colecionismo digital fico com a sensação que a narrativa não é conclusiva, ao estar sempre aberta e disponível a novas inserções, torna-se interminável e menos personalizada. Creio que é um processo mais comunitário e menos individualizado. Tem como grande virtude a universalidade e a imensidão de informação como objecto de estudo. 

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