Editado em 1989, com a dupla Arto Lindsay e Peter Scheerer na produção, o álbum “O Estrangeiro” é um disco a (re)descobrir neste tempo de celebração dos 80 anos de Caetano Veloso. Texto: Nuno Galopim

Percurso feito de mil e um caminhos e desafios, a obra de Caetano Veloso foi traduzindo, disco após disco, ano após ano, o efeito de contactos com outras gentes e outros lugares. E se há disco que sabe traduzir essa noção de experiência “alienígena” sem contudo perder identidade plena e expressão de marcas autorais, ele será O Estrangeiro, gravado em Nova Iorque e marcado pelas possibilidades de diálogo levantadas pelo elenco que o músico chamou para criar um álbum que corresponde a um dos episódios mais cativantes de toda a sua discografia.
Arto Lindsay, norte-americano com parte da sua vida por esses dias feita já no Brasil, mas com importantes ligações às movimentações mais ousadas dos cenários pop/rock nova iorquinos na alvorada dos anos 80, e Peter Scherer, compositor nascido na Suíça e ligado desde essa mesma altura aos caminhos de vanguarda que então se desenhavam em Nova Iorque, tomam aqui o leme da produção, não sendo por isso de estranhar uma afinidade entre o som que caracteriza este álbum de Caetano Veloso e o que, por essa mesma altura, Arto e Peter levam aos discos da dupla que então tinham sob o nome Ambitious Lovers, pela qual expressavam marcas das visões que nasciam nas frestas de uma Nova Iorque sempre insatisfeita com as formas que a música ia tomando, sonhado, por isso, eventuais caminhos com aquele sabor de terreno a ser desbravado.
Caetano Veloso não era de todo uma figura estranha a esta ideia de desafio ou de descoberta de novos lugares e consequente assimilação dos estímulos aí encontrados. Dos discos nascidos durante o exílio em Londres na reta final dos anos 60 às visões menos canónicas que levou ao mais experimental Araçá Azul (1973), havia já na obra de Caetano Veloso exemplos de como a sua invulgar curiosidade e capacidade de reflexão representava uma importante contribuição para a construção de uma música de vistas raras e largas. Além disso não era a primeira vez que gravava em Nova Iorque… Mas em O Estrangeiro é das vanguardas pop/rock da ‘big apple’ que chegam os estímulos que ganham forma em canções nas quais, além da dupla de produtores, encontramos ainda as presenças de nomes como os de Marc Ribot ou Bill Frisell, aos quais se juntam ainda, por exemplo, Carlinhos Brown, que já tinha gravado com Caetano.
Sem fechar os caminhos das canções, os estímulos e visões captados na Nova Iorque vanguardista de então acabam, tal como acontecera nos discos londrinos, por ser assimilados, diluindo-se depois na carne natural da música de Caetano Veloso, contudo desta vez sem as marcas de distância e saudade que o exílio então ditara. Há por isso outros caminhos entre os temas e palavras, vincando logo a faixa de abertura – que dá título ao álbum – a noção de “estrangeiro” que, de forma tranquila, Caetano então vivia na cidade que o acolhia para gravar um disco que marcaria um episódio único e diferente no corpo do seu percurso. Citando Paul Gaugin, Cole Porter ou Claude Lévi-Strauss, mas destacando sempre relações entre todos eles e o Brasil, a canção abre um disco de diálogos cosmopolitas que terminam contudo, ao som de Genipapo Absoluto, com uma sugestão de “regresso a casa”. Desafiante e vertiginoso nos sons, O Estrangeiro representa um momento de inspiração maior na obra de um músico que nunca temeu escutar os outros para continuar a pensar quem ele mesmo podia ser.
Um disco magnífico!
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