A poucos dias da edição de uma caixa com parte da obra em álbum editada pelos Human League – incluindo Dare (1981), Hysteria (1984), Crash (1988) e Romantic? (1990), juntando ainda o mini LP americano Fascination (1983) -, aqui ficam memórias de duas entrevistas que fiz com Phil Oakey, o vocalista da banda.

Antes dos Human League fazia-se essencialmente com guitarras. O que vos levou a imaginar que as canções pop seriam também possíveis de criar apenas com o recurso a sintetizadores?
Em primeiro lugar éramos admiradores da música pop. Gostávamos de algum rock progressivo, como os Van der Graaf Generador. E um de nós, o Martin Ware, confessou que gostava dos Slade. Então resolvemos não ser pretenciosos, não ser arty. Não íamos fazer música de vanguarda. Íamos fazer pop. Adorávamos Donna Summer e os Abba. Eu trabalhava como porteiro e tinha acesso livre a telefones. E havia uma linha para a qual podíamos ligar e ouvir álbuns pop inteiros. Cada vez que saía um disco novo dos Abba ouvia-o inteiro. Cada um era melhor do que o anterior! Além dos discos, houve a influência do filme A Laranja Mecânica, que também nos marcou bastante.
Quando o grupo começou, o trabalho com sintetizadores era já uma certeza para os Human League?
Essa era a ideia dos músicos que criaram o grupo percursor dos Human League, que se chamava The Future [e que mais tarde saíram para formar os Heaven 17, mais concretamente Ian Wright e Martin Ware]. Eu também só queria trabalhar com sintetizadores. Ainda hoje sinto que só me sinto bem a lidar com sintetizadores, até porque não domino nenhum outro instrumento. Perco-me… Se um músico entra em estúdio para tocar guitarra é porque eu não posso dar o meu contributo nesse momento. Nem sei mesmo ver, se algo soa mal, o que é que está errado. É um mistério para mim.
Antes de vós, Gary Numan teve um, número um com Are Friends Electric? Foi em 1979… Esperavam que a pop feita com electrónica alcançasse o êxito que de facto veio a ter?
Todos o sabíamos. A única questão em aberto era ver quem seria o primeiro. Creio que começámos bem, com bons concertos e um par de álbuns interessantes, mas no início havia gente a fazer música mais comercial e, devo dizer, bem melhor que a nossa. Veja-se o Electricity dos Orchesltral Manouevers in the Dark… Pensávamos que íamos falhar…
Que impacte tiveram em vós os pioneiros electrónicos de 70?
Foram referências fundamentais. Não escutávamos muito os Tangerine Dream… Não conhecíamos então os Can que, para ser honesto, só agora estou a aprender a conhecer… Já os Kraftwerk tiveram outro impacte, até porque nos mostraram, claramente, o que podíamos fazer. Havia também outros nomes que nos influenciaram então, como Jean Michel Jarre, Daniel Miller e também Georgio Moroder… De resto, I Feel Love, de Moroder, foi uma peça fundamental para nós. Queríamos ser uma espécie de novos Donna Summer(s)…
Mas com um clima mais sinistro…
Era verdade, talvez por sermos rapazes do Norte de Inglaterra que tinham visto muitos filmes de ficção científica.
É isso que define o “ambiente” de Sheffield, de onde vêm?
Sem dúvida.
Como justifica o facto de Sheffield nos ter gerado tantas bandas a trabalhar com electrónicas na alvorada de 80?
Nunca obtive uma explicação definitiva para esse facto. Éramos uma cidade muito continental… O único lugar onde vou e sinto haver afinidades com Sheffield é a cidade de Colónia, na Alemanha.Na altura não sofremos a taxa de desemprego de outras cidades inglesas, e podíamos comprar os instrumentos que nem eram astronomicamente caros. Tínhamos de fazer horas extraordinárias para os pagar, é certo, mas isso ainda não mudou… Sheffield era, também, uma cidade consideravelmente arty. A cidade adorava os Roxy Music e David Bowie…
Não havia, também, uma certa dinâmica punk nas entrelinhas dos primeiros registos dos Human League?
Nunca teríamos conseguido fazer nada se não tivesse acontecido o fenómeno punk. Mudou a forma de encarar a música e o ser-se músico. Gostávamos muito dos Clash, que eram também muito populares em Sheffield. Mostraram-nos que não tínhamos de ser exemplares nem geniais. Podíamos apenas procurar expressar quem éramos.
Apesar do clima menos luminoso dos primeiros discos, pontualmente apareciam nos vossos discos frestas de maior calor pop, como um Empire State Human . Essa semente já lá estava…
Era a tal procura de sentido na herança de Giorgio Moroder. Ele foi, de resto, a grande inspiração para essa canção.
Mas algo muda de Travelogue para Dare… E o som ilumina-se.
A equipa envolvida tem muito a ver com o que mudou. Em primeiro lugar há logo que destacar a presença das vozes femininas, que aligeiraram muito a intensidade do som. A luz em vez da sombra…Tínhamos de seguir naquele sentido. Tínhamos uma dívida enorme, na ordem das 50 mil libras, com a editora. Ou fazíamos um disco que nos ajudasse e à nossa carreira, ou acabava tudo e voltávamos a trabalhar em hospitais. Era o momento de avançar…
O apuramento da imagem juntou então outros condimentos…
Aí era uma reacção de oposição de época à estética visual do punk e, de certa forma, uma herança dos Roxy Music e de David Bowie. De certa forma assumimos frontalmente uma pose de estrelato, política que muitos grupos rejeitavam em absoluto. Veja-se o caso dos Pink Floyd, que vendiam milhões de discos… Não era essa a nossa posição. Éramos uma banda muito visual. Gostávamos de cinema e de trabalhar com imagens em geral.De resto, fizemos nós mesmos as capas dos nossos primeiros discos
Dare! ainda tem hoje um certo sabor futurista…
Muitos dos avanços tecnológicos que aconteceram depois dos sintetizadores analógicos têm sido, de certa forma, coisas com “sabor antigo”… As ferramentas de gravação que apareceram são, sobretudo, máquinas de gravação. Os samplers são gravadores que permitem um trabalho muito rápido. No final dos anos 70, os sintetizadores eram, de facto, uma novidade absoluta… Costumo dizer que os samplers são como uma máquina fotográfica, ao passo que os sintetizadores analógicos permitem fazer pintura. Partimos de uma tela em branco e temos de a ilustrar. Fazemos o que queremos, mas temos de criar e não apenas dar forma a algo que já existe. Por isso penso que, ainda hoje, os sintetizadores são ainda o instrumento mais moderno que existe.
Dare! teve um fortíssimo impacte junto ao público, mas certamente também dentro do grupo. Foi difícil pensar o que fazer depois?
De facto…Esse disco foi a materialização exata daquilo que queríamos fazer, isto sem querer dizer que não me orgulhe de discos que tínhamos feito antes ou dos que gravámos depois. Mas na altura queríamos mesmo continuar a fazer música pop as nossas finanças eram até então tremidas, pelo que também nesse sentido o disco foi positivo. Tal como foi positivo trabalhar com aquele grupo de pessoas… O mais interessante em Dare! foi o resultado do esforço colectivo de nove pessoas, que não teriam atingido aqueles resultados sozinhos.

Porque levaram tanto tempo a conceber um sucessor? Na época era hábito editar-se um álbum por ano…
Toda a gente ficou meio afetada, meio doida! O Martin Rushent, que era o produtor, perdeu toda a confiança no que estávamos a fazer depois. Se o Martin não se tivesse sentido daquela forma, o sucessor teria aparecido mais cedo… Ele afastou-se. Tínhamos o Mirror Man e o Fascination, que não podíamos depois juntar a mais nada… Essas duas canções iriam fazer parte de um álbum que não pudemos completar sem o Martin. Vistas as coisas à distância, reconheço que talvez tenha sido lesivo o volume de sucesso que então vivemos.Foi prematuro… E não tínhamos talento para responder à altura…
Curiosamente, na altura eram sistematicamente sovados pela imprensa britânica. Há poucos anos, quando lançaram Secrets, passaram de bestas a bestiais…
É um facto! As críticas que tivemos com Secrets foram as melhores que alguma vez obtivemos. E o mesmo voltou a acontecer, depois, com um disco de material mais antigo, dos inícios de vida do grupo [The Golden Hour Of The Future, de 2002]… Penso que tudo isso também se deve ao facto de sermos hoje um grupo discreto, que está algures no cenário. Não temos um protagonismo actual evidente. E as pessoas falam de nós como alguém que usa instrumentos interessantes e faz boas canções.
Entre meados de 80 e o recente Secrets, os Human League não deixaram nunca de, ocasionalmente, surpreender-nos. Com Crash, em 1986, ensaiaram uma linguagem assumidamente americana…
Foi uma experiência interessante. Não era bem um álbum de Human League, mas mais um ensaio sobre como é que os americanos fazem discos. O Jimmy Jam e o Terry Louis não só são extremamente talentosos como foram verdadeiros gentlemen. Ajudaram-nos, abriram-nos os olhos… E deram-nos um número um, sem o qual talvez não estivéssemos aqui hoje. E creio que o mesmo se voltou a passar, mais tarde, com o Tell Me When. São pequenas histórias e momentos de sucesso que nos fazem sentir porque fazemos música há tantos anos.
Os dois álbuns dos anos 90, Romantic e Octopus, foram tentativas de reencontrar a alma perdida de Dare?
Não creio que houvesse uma ideia definida do que poderíamos fazer quando gravámos o Romantic… Nessa altura estávamos até perdidos. Deixámos de usar sintetizadores e adoptámos os samplers, que toda a gente então usava, não por acreditarmos nesses instrumentos, mas porque pensávamos que nos fariam novamente famosos. Foram dias difíceis. Creio que só nos reencontrámos apenas em Secrets… Agora estou sentado no estúdio, a olhar para os instrumentos que sei que quero explorar e como os explorar.
Secrets saiu numa pequeníssima independente. É talvez por isso não conheceu a exposição que poderia ter vivido…
Mesmo assim estou muito satisfeito com o disco, indepentemente das vendas.
Metade do álbum eram instrumentais. Sempre tiveram um fraquinho por instrumentais…
Na verdade somos uma banda instrumental (risos). Impomos a nós mesmos a obrigação de fazer canções. Começamos sempre por ter a parte instrumental e só depois esta evolui para o formato de canção. Nunca partimos das vozes… Há 20 anos era difícil fazer carreira com instrumentais… Um Oxygene (Jean Michel Jarre) é uma rara excepção… Desde que a música de dança mudou os hábitos, tornou-se mais fácil…
Teve outros empregos depois do sucesso com os Human League?
Não. Tenho aprendido este ofício de fazer música, sem outras distracções, há já mais de 20 anos.
Mas teve outros empregos antes…
Fui porteiro de um hospital. E de um teatro… E trabalhei numa livraria universitária.
E como é que a música o roubou a esses empregos?
Conhecia o Martin Ware e o Ian Marsh, que tinham um grupo. Desentenderam-se com um outro tipo que trabalhava com eles. E juntei-me a eles. Creio que me chamaram porque era alto… Acho que foi a única razão…
Já tinha aquele penteado bizarro que depois fez escola?
Já o tinha antes. Já o tinha quando trabalhava no hospital e no teatro. Era mais comprido de um lado que do outro.
E como é que a música o cativou?
Aí a “culpa” é dos Roxy Music e do David Bowie! Eles mudaram as nossas vidas! E por causa deles quisemos ser diferentes. Por isso os Human League sempre foram uma alternativa. Há muitas bandas iguais. Além disso rejeitamos o rock. Somos mais teatro que rock. Preferimos ser mais Laranja Mecânica que Motorhead…
O vosso palco ideal seria o Korowa Milk Bar?
Sim, mas menos sexista.
Já compunha canções antes de se juntar aos Human League?
Não, de modo algum… De resto, nessa altura estava casado e a minha mulher dizia que eu não sabia cantar! Foi com graças ao Martin e do Ian [hoje nos Heaven 17] que consegui aprender a fazer música. Quando pequei na letra do Being Bolied, por exemplo, não consegui encontrar o ritmo à primeira. Os amigos ajudaram-me muito.
Que canção dos Human League gostaria de ver reconhecida daqui a 100 anos?
Diria que a melhor que compus foi o Mirror Man. Estou a falar da letra. Tentei fazer uma coisa ao jeito da parceria Holland Dozier Holland.
Tem canções especiais que goste de recordar ao vivo?
Não tenho canções preferidas em particular. Tenho mais temas de que não gosto como, por exemplo, o Together In Electric Dreams, de que as plateias tanto gostam. E tocamo-la, claro! Em casa não escuto as nossas velhas canções. Tento concentrar a minha atenção nas coisas novas que vão aparecendo. Nunca se fez música tão boa e tão aberta a novos espaços como hoje.
Não se cansa de ter de cantar, recorrentemente, canções como Don’t You Want Me e Together In Electric Dreams?
Nem por isso, porque sei que tenho a sorte de o poder fazer. Sou um tipo normal, e foi um privilégio ter podido fazer esta vida. Por isso não me aborreço.
E o que é soar a Human League?
O fundo deve ser inteiramente sintético. A única gravação possível com um microfone é a voz. Usamos gravação digital, mas estamos a trabalhar com sintetizadores analógicos. Queremos pequenas imprecisões… Rejeitamos a perfeição dos instrumentos digitais.
Porque são os Human League vistos hoje como referência?
Creio que tivemos a sorte de estar no lugar certo na altura certa. Apenas isso. Mas não somos melhores que os Kraftwerk nem que os Pet Shop Boys. Somos apenas um degrau no processo.
Como sobreviveram numa indústria que exige a novidade e a visibilidade permanentes?
Felizmente nunca saímos da nossa cidade: Sheffield. Nunca entrámos na cena das festas de Londres. Ainda vivemos perto dos pais da Suzan e Joanne. Nunca perdemos o contacto com a familia. E sempre fomos um pouco cínicos e suspeitámos sempre de toda a gente. Muita gente em bandas pop é ingénua. Nunca o fomos. Se um tipo nos entra porta dentro, de fato e gravata, a dizer que nos vai fazer ganhar um milhão, dizemos-lhe “boa sorte”! Só acreditamos se o provar… Se nos desafiarem para irmos a um programa de televisão com regras bizarras não vamos. De resto, boicotámos até presenças em alguns programas.
Como por exemplo?
O Solid Gold, na América. Era o único de música programa transmitido à escala nacional, nos EUA, quando lá fomos pela primeira vez [em 1981]. Tinham sempre dançarinos… Dissémos-lhes que não trabalhávamos com dançarinos. Tínhamos a Suzanne e a Joanne e não queríamos que os espectadores confundissem que era com quem não era da banda. Disseram que não podiam tirar os dançarinos. Os profissionais de televisão são sempre arrogantes… E nós cancelámos a presença no programa. Responderam-nos que a decisão nos ia custar o sucesso na América. Mas três semanas depois éramos número um.
Essa foi uma boa decisão. Mas há outras que lamente?
Deveríamos ter trabalhado mais…
Como assim…
Deveríamos ter feito mais discos. E guardado o dinheiro num banco. Fazemos isto porque gostamos de música. Mas as nossas vidas evoluem, temos de comprar uma casa para viver… E a mobília…
As duas conversas aqui reunidas num texto único ocorreram em 2002 e 2007 e parte destas respostas serviram artigos então publicados no DN.
