Apesar de focado apenas no mundo anglófono, o livro de Paul Gorman apresenta contudo um relato detalhado sobre a história do jornalismo ligado aos espaços pop/rock (e periferias) na imprensa escrita. Texto: Nuno Galopim

Tem por título Totally Wired: The Rise and Fall of the Music Press e propõe uma história do jornalismo musical (nas áreas pop/rock, entenda-se). O título é cativante. A leitura revela uma dimensão de pesquisa de grande fôlego, documentando não apenas o que se foi publicando mas juntando também as historias de quem escreveu e editou todos estes jornais e revistas. Porém, o livro é um pouco como uma história da ópera escrita por um italiano que resolve então ignorar um Wagner, um Bizet ou um Handel…
Jornalista veterano, o autor Paul Gorman, irlandês, apresenta aqui um magnífico trabalho sobre o jornalismo musical, mas fecha o campo às geografias em que a língua lhe é comum… Na verdade, a badana refere que esta história cruza “os dois lados do Atlântico”. Mas só uma cabeça anglo-centrada acha que Brasil, Espanha, México, Senegal ou Nigéria não ficam… em costas Atlânticas… Enfim. Equívoco não só do autor como da própria Thames & Hudson que publica o livro, que sugere que aqui se conta a “ascensão e queda da imprensa musical”… Sem acrescentar que o faz nos espaços geográficos que falam e escrevem em inglês.O Reino Unido está aqui como epicentro das atenções. A Irlanda, os EUA e Austrália surgem como complementos igualmente bem retratados… Mas, se excluirmos um tiro de raspão à publicação francesa Salut Les Copains (que de certa forma lançou um importante modelo de jornalismo pop que teve inclusivamente impacte no mundo anglófilo), todo o mundo exterior ao inglês é remetido ao silêncio. Ou seja, ficam de fora as histórias de, por exemplo, uma Les Inrockuptibles (que chegou a gerar um importante disco de tributo a Leonard Cohen e procurou traduzir uma dimensão cultural, social e política, olhando o mundo para lá da música). Ou uma alemã Bravo, que sublinhou uma vertente mais próxima das visões cor-de-rosa, valorizando a imagem sobre o texto (“lida” fora da Alemanha até por quem não sabia alemão). Isto sem falar no que seria interessante ficar a saber como evoluiu o jornalismo musical na América Latina (um dois mais ativos pólos da criação musical à escala mundial), assim como em em várias geografias asiáticas e africanas, isto sem esquecer importantes espaços europeus com importante produção discográfica local. Enfim… O problema resolvia-se com uma ressalva na capa. E agora, sabendo, depois de lido o livro, que esta “ascensão e queda da imprensa musical”, na verdade se concentra apenas na produção em língua inglesa, espreitemos o que nos conta o livro.
A história começa a ser contada com o advento de uma publicação que, na origem (e durante parte do seu percurso inicial) teve o jazz no centro das suas atenções: o Melody Maker que, quando entrou em cena, em 1926, tinha uma periodicidade mensal. Surge depois o Rhythm Illustrated Musical Monthly, e logo aqui nota-se como a evolução da presença das imagens na própria história da imprensa escrita será fundamental para os ciclos de vida de publicações e tendências de mercado. Com o “nascimento” da cultura rock’n’roll surge o New Musical Express, ou seja, o NME (um rebranding do antigo Musical Express), que se afirmará como uma das forças maiores na história do jornalismo musical, definindo paradigmas nos modos de apresentar críticas e até mesmo a procura de novos ângulos para as entrevistas a músicos. É com o NME que nasce uma ideia de uma tabela de vendas, que nas origens resulta de uma consulta do próprio jornal a uma série de lojas de discos espalhadas pelo Reino Unido. O boom de consumo de uma geração de teenagers abre depois espaço a uma imprensa musical mais ligeira, com a 16 como uma precursora de muitas outras publicações que nasceriam depois.
Nesses tempos, porém o Melody Maker era ainda a referência, E nos inícios dos anos 60, quando o jornal cunha o termo “beatlemania”, começam a emergir figuras de relevo. Jornalistas que ganham um estatuto de visibilidade maior, sendo um dos primeiros o editor Ray Coleman, que “nunca citou erradamente ninguém, nunca usou frases demasiado elaboradas, mas conseguia transmitir o que sentiam os artistas de um modo direto e honesto, e com profundidade”, explica o livro. É também no Melody Maker que surge, mais adiante, Penny Valentine, uma das primeiras mulheres a ganhar visibilidade no novo jornalismo musical, distinguindo-se por destacar nomes como os de Aretha Franklin ou Marvin Gaye e a notar, antes de muitos mais, o potencial de David Bowie ou Elton John. O livro refere depois outros casos notáveis nascidos no jornalismo musical, de Lester Bangs ou Cameron Crowe a Barney Hoskyns ou Jon Savage, naturalmente sem esquecer a passagem de Neil Tennant (dos Pet Shop Boys) pela revista Smash Hits, que revolucionou o meio nos anos 80, gerando então um fenómeno de sucesso para uma fórmula que nasceu da vontade de juntar numa mesma publicação as letras das canções de sucesso no momento, fotografias e entrevistas mais focadas em trava do que nas ideias. Do mapa britânico nota-se depois o papel transformador de uma The Face (e suas descendências) e o modo como, nos anos 90, depois do impacte da Q surgem publicações mensais como as extintas Select ou Vox, que definem uma genética ainda hoje bem presente na Mojo e Uncut Ao mesmo tempo o livro acompanha o nascimento de publicações mais focadas em nichos, como a Wire, a MixMag ou a Straight No Chaser, que dão conta da pujança de um mercado que, nos anos 90, havia para estas outras frentes do jornalismo musical.
Com uma história que recua a finais do século XIX, mas com a música como seu único foco apenas nos anos 50, a Billboard é um dos títulos americanos aqui referidos, destacando contudo o livro (e com toda a razão) o papel da Rolling Stone entre as demais publicações americanas. O punk e as publicações que fez nascer, os espaços de afirmação da música negra americana juntam histórias a um livro que relata depois, com detalhe, as histórias das grandes transferências entre publicações e narra episódios de revolução interna em jornais (como a que mudou o curso de vida do NME nos anos 70 e lhe deu a liderança do mercado até à chegada da Smash Hits). E entre as suas 384 páginas podemos ainda revistar uma multidão de publicações, umas que ainda vivem, outras que o tempo tirou do mapa, do semanário britânico Sounds a revistas como a Creem, i-D, Zigzag, Slash, Kerrang, Flexipop, Nº 1, The Vibe, Record Mirror ou Ray Gun. Desconcertante é, depois, a forma como se olha a reta final do percurso sem dar devida presença à emergência dos espaços online. É verdade que a imprensa impressa tem uma história a ser contada. Mas não se conta a história de uma “ascensão e queda” do jornalismo musical sem notar como as mudanças de paradigma agiram sobre as publicações impressas e até mesmo como novos meios abriram outros caminhos para a forma de falar sobre música no jornalismo atual.
Desconcertante é, depois, a forma como se olha a reta final do percurso sem dar devida presença à emergência dos espaços online. É verdade que a imprensa impressa tem uma história a ser contada. Mas não se conta a história de uma “ascensão e queda” do jornalismo musical sem notar como as mudanças de paradigma agiram sobre as publicações impressas e até mesmo como novos meios abriram outros caminhos para a forma de falar sobre música no jornalismo atual.
OK, não li o livro a que este artigo se refere. Já tinha passado os olhos por um outro livro do Paul Gorman, o In Their Own Write, cuja visão me pareceu, essencialmente, esta: o período de ouro da imprensa musical terminou quando o Nick Kent, a Julie Burchill, o Tony Parsons e o Charles Shaar-Murray saíram do NME e entraram os “chatos” Paul Morley, Ian Penman e Barney Hoskyns, cheios de teorias pretensiosas e filosofia de pacotilha. É uma visão, é tudo o que tenho a dizer sobre isso.
Quanto à parte que citei, só o facto de a Pitchfork (bastava essa) não merecer sequer uma menção já não abona muito a favor do livro, não. E não são só webzines como eles. Basta pensar na importância (e influência) que o Anthony Fantano claramente tem, enquanto crítico YouTuber, nos diferentes canais que gere.
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É como digo no texto. O olhar sobre a imprensa escrita britânica está bem documentado (não vou comentar os estilos de jornalismo, porque dessas variações viveu a evolução da coisa). Há um pedaço da história impressa nos EUA e de Austrália. E o resto quase nicles… Isto só na imprensa “impresssa”. Mas o jornalismo musical também passa, claro, pelo online… E até não descartaria numa “História” mais completa os papéis dos media audiovisuais… rádio e TV.
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