Pode ser extensa a autobiografia do vocalista dos U2. Mas em “Surrender” confirma-se o gosto em partilhar histórias (e reflexões), revelando não apenas episódios da vida do músico e seus discos, mas também toda uma dimensão política do seu percurso. Texto: Nuno Galopim

Os últimos anos assistiram à publicação de um considerável lote de publicações em livro de retratos autobiográficos, alguns deles, como os de Patti Smith, David Byrne ou Bruce Springsteen a merecer um lugar entre o panteão dos melhores títulos do género. Em finais de 2022 foi Bono (a voz dos U2) quem juntou as suas às palavras dos outros que já fixaram em livro olhares, reflexões e memórias sobre as suas vidas na música (e não só). Com uma estrutura que divide o texto em capítulos, cada qual apresentando o título de uma canção dos U2 (não necessariamente do período referido nas respetivas páginas), Surrender (com o subtítulo traduzido “40 Canções, Uma História) não esconde que nasceu da verve de alguém que gosta de falar, de contar histórias e, agora, de… escrever.
Bem mais extensa que muitas outras autobiografias (e por vezes aquela ideia de tirar o que está a mais tinha ajudado alguns dos capítulos), a história de Bono, embora não seja forçada a uma grelha cronológica (da qual por vezes escapa) arruma as suas memórias segundo um percurso que começa por nos colocar nos seus tempos de juventude, na Irlanda dos anos 70, assistindo à génese dos próprios U2 (uma das etapas mais interessantes de toda a trama, traduzindo ecos de uma autoconfiança, a dos músicos e a do célebre manager que cedo os descobriu) que venceu adversidades, incluindo as nada fáceis primeiras viagens a Londres em busca de palcos e de um eventual acordo editorial. Mais adiante são bem vitaminados os relatos da criação de discos como Boy, The Unforgetable Fire, The Joshua Tree ou Achtung Baby, revelando o livro, em sentido contrário, alguma vontade menor em caracterizar os acontecimentos e processos criativos noutros momentos.
Mas Surrender não é uma biografia musical. Não é uma história da vida dos U2 (isso já existe na biografia oral U2 By U2). Pelo que a riqueza maior deste volume reside nas experiências pessoais, seja na ocasião em que Bowie passou uma noite na casa de Bowie e Ali (a sua mulher) ou um jantar, em casa de Frank Sinatra, ao fim do qual o vocalista dos U2 acordou numa poltrona, de calças molhas, temendo que se tivesse descuidado… Nada disso, entornara o copo, ao fim de uma noite de muitos outros já bebidos. Aios cruzamentos com muitos músicos o texto valoriza (justificadamente) toda uma dimensão política, o que subentende relatos de encontros e relacionamentos com grandes figuras do nosso tempo, entre as quais os presidentes Clinton e Bush (filho) ou a Secretária de Estado deste último, Condoleeza Rice. O seu envolvimento em campanhas, do coletivo Band Aid (sobre o qual revela que queria cantar todos menos os versos que acabou mesmo por cantar) à luta contra o vírus VIH (sobretudo focado em África) são peças que completam um relato de um percurso que, mesmo sem discos realmente cativantes há já algum tempo, faz dele e dos U2 casos maiores da história da música popular. E tudo isto com espaço para a autocrítica, como, por exemplo, quando ele mesmo reconhece que não foi lá grande ideia a de levar as canções de Songs of Inocence aos iPhones de toda a gente do planeta, mesmo sem que os donos desses telemóveis as tivessem pedido…
“Surrender – 40 Canções, Uma História”, de Bono, é um volume de 608 páginas publicado entre nós pela Objetiva.