Deixou-nos no passado dia 28, depois de uma nova luta contra um tumor. A sua obra, a solo, com a Yellow Magic Orchestra ou em muitas parceiras, representa uma das discografias mais cativantes e diversificadas entre os grandes da sua geração. Texto: Nuno Galopim

Recentes (e devastadoras) notícias tinham sido enunciadas com a tranquilidade como que sempre conhecemos a sua forma de comunicar. E, ainda em 2022, o próprio Ryuichi Sakamoto dava conta de uma segunda luta contra uma doença que, em tempos idos, até conseguira vencer, embora desta vez não parecendo ter o mesmo horizonte de esperança pela frente. Fez então saber que, enquanto o corpo lhe permitisse, iria continuar a criar música, a tocá-la sobretudo ao piano. Pelo caminho surgiu um tributo que assinalou a passagem do seu 70º aniversário. E, já nos primeiros dias de 2023, um novo álbum, de título “12”, que fixava peças que surgiam com o titulo de datas, como que páginas de um diário que sabe que caminha para o momento da despedida. A notícia chegou este domingo, revelando que, desde o passado dia 28, Ryuichi Sakamoto não estava mais entre nós.
Nascido em 1952, com formação em música feita na Universidade de Tóquio na segunda metade da década de 70 e tendo procurado desde logo explorar tanto as novas possibilidades das emergentes eletrónicas como os espaços da etnomusicologia, Ryuichi Sakamoto conquistou atenções bem cedo, quer através do trabalho feito com a Yellow Magic Orchestra (importante banda pioneira da pop eletrónica), quer num percurso a solo, tendo editado em 1978 primeiros álbuns tanto com o grupo como em nome próprio. Lançado em outubro de 1978, ou seja, um mês antes da estreia em álbum da Yellow Magic Orchestra, “Thousand Knives, o primeiro LP de Ryuichi Sakamoto, revelava um talento eclético capaz de coexistir em várias frentes, com evidentes apetites pela exploração de eletrónicas, de caminhos mais experimentais e também pela noção (então ainda na sua génese) de música ambiente.
Os primeiros grandes contactos internacionais, um deles na forma de uma colaboração com os Japan em 1980 na canção “Taking Islands in Africa”, que encetava uma uma colaboração muito regular desde então com David Sylvian, e o saciar de visões mais exploratórias do seu segundo disco em nome próprio, “B2-Unit”, editado também em 1980 (e onde surgiu “Riot In Lagos”, precursor do electro), levou-o a procurar, para o seu terceiro disco, “Left-Handed Dream” (titulo internacional) uma lógica de diálogo ainda mais evidente com novas formas e geografias da música popular. Na base desse terceiro álbum a solo de Ryuichi Sakamoto esteve, assim, uma curiosidade pela forma da canção pop ocidental sem procurar mimetismos, mas antes uma assimilação de ideias com vista à expressão de um fruto da sua identidade que conquistaria um dos seus episódios mais marcantes em discos como “Illustrated Musical Encyclopaedia” (1986), “Neo Geo” (1978) ou o sublime “Beauty”, álbum editado em 1989, definindo a faceta mais pop de um percusrso que, nos anos 90, teria ainda continuidade em álbuns como “Heartbeat” (1991) ou “Sweet Revenge” (1994). Em paralelo a sua obra ia investigando dimensões mais exploratórias, como se escutara em discos como “Esperanto” (1985) ou “Futurista” (1986), este último incluindo gravações da voz de Filippo Tommaso Emilio Marinetti, fundador do movimento futurista. Esta dimensão mais experimental teria expressão em vários discos posteriores, entre os quais “Chasm” (2004). Um outro importante espaço na discografia de Sakamoto corresponde a gravações de música para piano ou ensambles de câmara, em álbuns como “1996” (que recuperava algumas criações para o cinema), “BTTB” (1999) ou “Playing The Piano” (2009).
O gosto pela partilha de experiências e pelo trabalho de colaboração, fez com que, além de Sylvian, e ao lado de Iggy Pop ou Thomas Dolby, Sakamoto experimentasse importantes flirts com vozes e formas da canção pop. Mas foi de facto com o então já ex-vocalista dos Japan que aceitou fazer viagens que começaram perto da canção pop e rumaram depois para além das fronteiras dos géneros, num conjunto de ensaios que alargaram possibilidades para a sua música. É sobretudo marcante a canção que ambos criam para a banda sonora de “Feliz Natal Mr Lawrence”, de Nagisa Oshima (ou seja, “Forbidden Colours”), filme de 1983 para o qual, além da música, Sakamoto também desempenhou um dos papéis protagonistas, contracenando então com David Bowie. O seu envolvimento com o cinema focou-se todavia mais na arte de criar música para as imagens e narrativas, destacando-se entre outras as suas colaborações com o cineasta Bernardo Bertolucci, para quem trabalhou nos históricos “Um Chá No Deserto” e “O Último Imperador”, neste último caso vencendo um Óscar então partilhado com David Byrne e Cong Su. Experiências posteriores, ao lado de figuras como Jacques Morelembaum, Christian Fennez ou Alva Noto, voltaram a mostrar como o fulgor do explorador não escapara ao seu mapa de desafios.
Ryuichi Sakamoto tem uma discografia vasta e nunca deixou de criar musica. Mas na década passada um tempo de longo hiato de novas gravações de estúdio, preenchido sobretudo com composição de música para cinema, fez-se sentir até que, ao cabo de oito anos de silêncio (habitados na verdade por uma batalha clínica contra um tumor na garganta), Sakamoto regressou aos discos em nome próprio com “Async” (2017) uma obra-prima que propunha sugestões que habitavam as periferias do silêncio. E havia algo de curioso em comum entre este disco – que podemos descrever como ambient – e um outro que, em meados dos anos 70, levara Brian Eno ao encontro dessa mesma ideia: o silêncio em tempo de convalescença. Numa cama de hospital Eno escutara o que antes nunca ouvira, descobrindo nas periferias do quase nada o tudo que depois resolveu explorar. Também “Async” surgiu depois de um tempo habitado por silêncios. E entre o piano e os acontecimentos manipulados, foi de silêncios que viveram os instantes que se fixaram nas filigranas de acontecimentos que Sakamoto desenhou neste seu magnífico disco de regresso.



Estreado em 2017, o documentário “Coda” leva-nos aos espaços mais pessoais da vida de Sakamoto, procurando contar o que aconteceu entre o momento em que foi diagnosticado o tumor na garganta, a paragem e, depois do tratamento, o retomar da atividade, procurando então criar esse álbum que, o músico temia então que pudesse ser o último pelo que, como depois afirmou, queria criar algo que se orgulhasse de aqui deixar. Foi nesse período de labor criativo, acompanhando-o focado na busca da música que fixaria em “Async”, que a câmara de Stephen Nomura Schible o acompanhou. “Coda”, que podemos rever agora com um ainda maior corpo de significados, é um retrato de um artista em busca de um desafio na forma de música. E mesmo sob a tensão que sugeria que este poderia ser o seu último álbum de originais, o percurso que acompanhamos em “Coda” é tudo menos o de um homem em corrida contra o tempo. Tranquilo, focado, curioso, esse é o Ryuichi Sakamoto que encontramos num documentário essencialmente focado no presente, ou em ações ativismo que se seguiram ao desastre de Fukishima ou em momentos de presença em palco, guardando, contudo, o tutano das atenções para os espaços de demanda criativa. E aí entramos no espaço da sua casa, em Nova Iorque. Ora numa sala onde tem um piano, ora numa divisão que transformou no seu estúdio/atelier de trabalho. E tal como o discurso sobre a vida e o presente de que nos vai falando, o olhar não se desvia do universo dedicado ao trabalho. O resto é espaço privado, respeitado como tal, e não passa por aqui. A rever, de facto (está disponível em DVD).
No ano passado, o aparecimento do disco de tributo a Ryuichi Sakamoto não foi criado como uma forma de antecipar, ainda em vida, um momento de homenagem (apesar de ter surgido já depois de sabido que uma nova batalha com o cancro estava em marcha). Na verdade este projeto estava já em curso bem antes de sabermos do estado de saúde do músico japonês e, na verdade, esta reunião de novas abordagens à sua música surgiu de um facto de calendário. É que, em 2022, Ryuichi Sakamoto completava 70 anos de vida. E esta viagem de ida e volta à sua música surgia, assim, para assinalar este momento. O alinhamento juntou então uma série de nomes que com ele já antes tinham colaborado (como David Sylvian, Alva Noto, Cornelius e Fennesz), acrescentava outros que o tinham como referência maior (Thundercat, Devonté Hynes, Cinematic Orchestra ou Hildur Guðnadóttir) e ainda figuras que o próprio Sakamoto admirava profundamente (Lim Giong, Gabrial Wek ou 404.zero).
Já em 2023, e editado no dia em que o músico assinalou o seu 71º aniversário, o mais recente e, este sim, último álbum, com o título “12”, partiu diretamente dos caminhos sugeridos por “Async”, aprofundando, numa lógica de diário, incursões solitárias que sugeriam uma reconfortante placidez. Em sintonia com o mood ambiental que desenhara o álbum de 2017, “12” acentuou mais ainda o caráter íntimo e pessoal desta derradeira etapa da obra de Ryuichi Sakamoto. Sem procurar palavras e vozes de outros (em “Async” havia samples de gravações de David Sylvian ou palavras escritas por Paul Bowles), “12” apresentou Ryuichi Sakamoto entregue ao piano e teclados de sintetizadores, sugerindo linhas, melodias, climas, ambientes, assinado cada composição com a data em que foi criada. Estamos assim perante algo que se aproxima à ideia de um diário no qual, pela música, sem palavras, Ryuichi Sakamoto nos convidava a partilhar estados de alma que nos davam retratos breves sobre de um espírito que, mesmo na iminência de uma despedida anunciada, parecia encarar o presente com um sentido de discreta tranquilidade.
Criadas num arco de tempo entre fevereiro de 2020 e março de 2022, estas doze peças traduzem um corpo final de trabalho no qual Ryuichi Sakamoto, continuou a trabalhar enquanto lhe foi possível. Quem sabe se, depois destas (que terão brevemente lançamento em suporte físico), outras mais composições poderão postumamente chegar aos nossos ouvidos. Para já, e juntamente com “Async”, este “12” sublinhou um gosto por uma escrita mais íntima, progressivamente menos adornada, tranquila, como que procurando, na linha do horizonte, diluir-se com o silêncio. Silêncio que, depois, caberá a nós que nunca se imponha sobre a obra de um dos mais fascinantes criadores do nosso tempo.