Há discos que ganham tamanho peso icónico e acabam representando aquilo pelo qual lhes é reconhecida a importância histórica de tal forma que quase nos esquecemos por vezes de neles reparar que há mais do que a ideia central que lhes dá o “rótulo”. O álbum de 1972 de David Bowie é disso um bom exemplo. Com o título completo “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars”, acabou eleito pelo tempo como não apenas um marco de viragem na carreira de Bowie (foi-o, de facto, elevando-o a um patamar de estrelato global), um episódio maior na história dos anos 70 (o que parece ser incontestável) e ainda paradigma de referência do glam rock… E é aqui que a coisa fica algo aquém do tal “rótulo”, na verdade cabendo a “Ziggy Stardust” uma abertura de horizontes e toda uma convocação de referências bem mais vasta que a que um ano depois se materializa em “Aladdin Sane”, disco cuja identidade sonora na verdade traduz uma pontaria mais afinada em campeonato glam. “Ziggy”, mesmo assim, indicava esse caminho e lançava (juntamente com discos seus contemporâneos dos T-Rex e Roxy Music) as linhas pelas quais se definiria o movimento. Mas é muito mais. Junta ecos de várias tradições, do melodismo pop ao fulgor elétrico do rock, de ecos dos blues ao elegante trabalho de arranjos de cordas, sem esquecer uma lógica teatral (que na verdade é peça fulcral na construção de uma linha narrativa que une as canções que dão voz à criação de uma personagem: o alienígena que visita a terra com uma mensagem de paz e amor mas acaba consumido pelos seus próprios excessos) e todo um programa identitário que vincaria mais ainda o seu peso na história. Além de tudo isto, e expressão do processo criativo que na verdade foi ganhando forma ao longo das sessões de gravação e dos acontecimentos em curso, “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars” só se materializou depois de um regresso a estúdio quase em vésperas da edição. Foi então que nasceu “Starman”, a canção que faria o ‘clic’ meses depois e colocaria Bowie no mapa das atenções. “Starman” acabou por entrar num alinhamento que então foi modificado à última hora, ali chegando mais canções, outras acabando por sair de cena. O retrato do que teria sido o álbum caso essa última sessão, em fevereiro de 72, não tivesse acontecido, é o que agora escutamos em “Waiting In The Sky (Before The Starman Came to Earth)”, um álbum que corresponde assim ao disco aparentemente “pronto” para seguir para a sua prensagem, tal como finalizado numa bobina de estúdio gravada a 15 de dezembro de 1971. 

Edição exclusiva do Record Store Day 2024, o álbum corresponde ao disco que Bowie poderia ter dado como terminado em dezembro de 1971. Mas em fevereiro de 1972 regressou a estúdio e um novo alinhamento acabaria por definir uma rota diferente para

Desde o desaparecimento de David Bowie, em janeiro de 2016, temos vindo a descobrir tesouros até ali guardados nos seus arquivos. E não é esta a primeira vez que chega a disco uma versão “eventualmente terminada” de um álbum que, afinal, conheceria ainda intervenções e transformações. Tal aconteceu já com “The Gouster” (editado em 2016), que corresponde a uma etapa na criação de “Young Americans” (1975) que ainda não comportava algumas gravações que ali chegariam pouco depois (nomeadamente colaborações com John Lennon, uma delas sendo o clássico “Fame”). “Waiting In The Sky” é, no fundo, um “Ziggy” quase pronto, em cujo alinhamento não estavam ainda o já referido “Starman”, mas também “Suffragette City” (também gravada a 4 de fevereiro de 72 e já sob a influência do recentemente visionado “A Laranja Mecânica” de Kubrick), “Rock ‘n’ Roll Suicide” (que acentuou a trama narrativa que assim dava corpo mais consistente à história de Ziggy Stardust) e ainda uma versão de “It Ain’t Easy”, de Ron Davies. De fora ficaram então uma versão de “Round and Round” de Chuck Berry (que surgiria em 1973 como lado B de “Drive In Saturday”), uma outra de “Amsterdam” de Jacques Brel (futuro lado B de “Sorrow”, também em 1973), uma regravação de “Holly Holly” (já editada em single) e ainda o célebre “Velvet Goldmine”, canção que daria nome a um filme de Todd Haynes em 1998 sobre ecos destes tempos. Muitas vezes referida pelo próprio Bowie como “He’s A Goldmine” or “She’s A Goldmine”, a canção só surgiu em disco no lado B de uma reedição de “Changes” em 1975. A capa de “Waiting In The Sky” recupera uma foto de Brian Ward e o inlay inclui reproduções das bobines originais saídas dos Trident Studios em dezembro de 71. O título, por sua vez, cita a letra de “Starman”, a canção que acabaria por definir a rota final de Bowie rumo à personagem de Ziggy Stardust e ao fenómeno de sucesso que então nasceu. Se calhar a história de Bowie não teria sido a mesma caso o alinhamento que escutamos em “Waiting In The Sky” tivesse chegado a disco em 1972 em vez do alinhamento que conhecemos em “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars”. Mas esse é um exercício de história alternativa que agora cada um pode fazer por si.

“Waiting In The Sky (Before The Starman Came to Earth)” é uma edição exclusiva em LP lançada pela Parlophone por ocasião do Record Store Day 2024.

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