A história completa de David Bowie, quando partiu em busca do sucesso… e a coisa correu bem

Muito se falou sempre dos arquivos de Prince. O mítico “cofre forte” do qual, de facto, já começámos a ouvir tesouros até aqui escondidos. Mas, mesmo não sendo certamente tão recheado de inéditos à espera de discos inesperados, a verdade é que os arquivos de David Bowie nos têm dado a conhecer, desde o seu desaparecimento, todo um catálogo de novas edições. Muitas delas têm surgido no quadro das caixas que têm vindo a ser lançadas com uma regularidade impressionante e que, até aqui, revisitaram já o período entre 1969 e 1988. Em 2018 uma edição em máxi-single revelou uma primeira maquete de Let’s Dance. E, agora, uma outra incursão por gravações de ‘demos’, gravações de sessões na rádio, remasterização de gravações e uma mistura alternativa para o álbum de 1969 acrescenta mais um momento revelador sobre a história da demanda de Bowie por caminhos para si mesmo e ajuda a compreender o seu processo criativo. Tem por título Conversation Piece e é uma edição exclusivamente disponível em livro e CD na forma de uma caixa com cinco discos que nos ajudam a compreender como Bowie partiu de um primeiro álbum “falhado” (no reconhecimento popular, entenda-se) e caminhou rumo a Space Oddity.

Vale a pena começar por recordar que Bowie tivera a sua primeira banda em 1962 e que editava já discos desde 1964. Passara por mais bandas e tinha entretanto encetado uma carreira em nome próprio. Na verdade só depois de uma valente mão-cheia de singles, nos quais seguia mais caminhos dos outros do que uma voz criativa pessoal (que ainda não tinha encontrado), Bowie conseguiu, em 1967, criar um álbum que não soava a alguém a apanhar um comboio em andamento. Chamou-lhe David Bowie e foi um ovni num ano em que muitas atenções se focavam nas rotas do psicadelismo ou garage rock… Era um disco que colhia heranças em velhas tradições do teatro musical e propunha algo que não parecia daquele tempo… Imaginem uns Divine Comedy antes do tempo, e sem a carga sinfónica, mas antes do tempo. O álbum passou a leste das atenções. Pelo que, no voltar da página, Bowie tivesse sentido a necessidade de procurar outros caminhos… E é aqui que entram em cena as gravações que agora encontramos nesta caixa.

As maquetes mais antigas aqui recuperadas colocam-nos na casa de David Bowie, em 1968. E, apenas acompanhado por uma guitarra acústica, encontramo-lo em busca de novas ideias, iniciando uma fase folk que, de facto, culminaria na forma do álbum editado em 1969 como David Bowie mas que com o tempo acabou por ficar designado como Space Oddity. Entre as maquetes que aqui escutamos há até duas gravações dessa canção que lhe daria um primeiro êxito, uma delas provavelmente correspondendo ao primeiro registo que dela fez. As gravações são caseiras, havendo flutuações na qualidade do registo. Mas todas elas estão tratadas e bem claras. E mostram uma voz em busca de linhas para cruzar a guitarra, a voz e as palavras. Há aqui incursões (não definitivas) por temas que depois surgiriam em disco, como é o caso de London Bye, Ta Ta (que esteve para ser single depois de Space Odddity mas acabou mais um tempo na gaveta) ou In The Heat of The Morning. Estas duas seriam gravadas em estúdio na primavera de 1968, mas só editadas mais tarde em compilações (a segunda numa antologia de gravações na BBC). De Angel Angel Grubby Face (aqui em duas versões) já se conhecia uma maquete num acetato que fora a leilão em 1993.

Entre este primeiro conjunto há três canções nunca escutadas antes deste ano. A mais arrebatadora é Goodbye Threepenny Joe, que o livro “The Complete David Bowie”, de Nicholas Pegg, referira como “Threepenny Joe”, segundo uma referência uma vez feita pelo manager de então de Bowie, mas desde então não mais escutadas. Depois há Mother Gray, a que o livro de Nicholas Pegg aludira apenas como uma maquete abandonada em 1968. E, depois, Love All Around, de que nem mesmo essa “bíblia” sobre a obra de Bowie nos dava ainda conta e de cuja letra é retirado o verso que dá título a esta caixa.

1968 foi, de facto, para Bowie, um ano vazio em discos mas cheio de mudanças. Poe um lado Lindsay Kemp chamou-o para colaborações depois de se aperceber das suas potencialidades performativas, sobretudo como mimo (nasce aí a relação de Bowie com a figura do Pierrot que usaria mais tarde, assim como um aprofundar das suas capacidades de cruzamento do corpo com a música e o palco). Esse é ainda o ano da sua estreia como ator em frente de câmaras com um pequeno papel (não creditado) num episódio da série “Theatre 625” da BBC. Nesse entram ainda novos colaboradores em cena, nomeadamente Hermione Farthingale (com quem tem um caso) e John ‘Hutch’ Hutchinson. E a três trabalham por uns tempos como Feathers…

Entre 1968 e inícios de 1969 surgiram as canções que Bowie gravaria numa fita que gerou o LP editado em 2019 com o título The Mercury Demos. A única indicação precisa nas liner notes fala em “Londres, 1969” mas John Hutchinson refere que, de todos os lugares por onde Bowie então ia ficando (e passou por várias moradas em 1968 e 1969) apenas na casa de Clareville Grove havia um gravador Revox. Contudo, estas gravações podem ter ocorrido num escritório da Mercury Records, a editora que se preparava para acolher no seu catálogo um segundo álbum de David Bowie… Certo mesmo é que não se tratam de gravações de estúdio e, além das canções, escutamos aqui a voz de Bowie e a de Hutch a referir não apenas o que estão a gravar mas também o facto de terem um mau gravador, ocasionalmente, juntando alguns dados de contextualização.

Ouvir estas gravações é como mergulhar naquele momento. É como se estivéssemos ali desde o momento em que é premido o botão “REC” e a gravação arranca, com pausa para virar a fita e logo a coisa recomeça. Em tempo real… E o que escutamos é, simplesmente, a apresentação – feita para a nova editora – das novas canções que poderão rumar ao álbum, deixando no ar a necessidade de se escolher um single. Apesar das características folksy que se escutam nas maquetes – e mais tarde no álbum – Bowie deixa claro, já no fim da gravação, que a ideia de ter voz e guitarra apenas não corresponde de todo ao som imaginado. E ali deixa claros que tipos de instrumentos, sublinhando concretamente um gosto pelo mellotron e a necessidade de ter um bom baixista.

A escolha do single não foi difícil e corresponde logo à primeira canção do alinhamento. Composta em finais de 1968 (depois de ter como estímulo o filme “2001: Odisseia no Espaço” de Kubrick), Space Oddity surge ali numa maquete com forma bem moldada, pronta a rumar a uma abordagem mais complexa em estúdio. E de facto é entre o restante alinhamento que encontramos ou composições de Bowie que ficaram por aqueles dias pelo caminho como Conversation Piece (que surgiria num lado B em 1970 e mais tarde integrou as sessões do ainda inédito “Toy”) ou When I’m Five (que surgiria no filme Love You Till Tuesday em 1969 mas apenas muito mais tarde em disco) ou canções que rumariam em versões bem diferentes para o alinhamento do álbum lançado em 1969. A versão de Janine, por exemplo, inclui ainda aqui uma citação a Hey Jude dos Beatles que seria excluída na versão final. A Letter To Hermione é apresentada numa versão ainda com o título I’m Not Quite e o mais complexo Cygnet Comitee surge numa abordagem de linhas ainda simplificadas sob a designação Lover To The Dawn. Mais perto da versão final do álbum está An Ocasional Dream. A fita guardava ainda uma interpretação a dois de Ching a Ling que nascera com os Feathers. Assim como duas versões. Uma é de Love Song, de Lesly Duncan (que trabalhava com Scott Walker), que integrava também o repertório dos Feathers e da qual Elton John gravou uma versão no álbum de 1970 Tumbleweed Connection. A outra é Life Is a Circus, de Roger Bunn (da banda de folk prog Djinn cujo vocalista se oferecera para trabalhar no álbum de Bowie mas acabara rejeitado). A canção integrou alinhamentos dos Feathers mas só em 2019 surgiu pela primeira vez em disco na caixa (de 2019) Clareville Grove Demos

A clareza da voz, a visão na composição e o incrível diálogo com a guitarra (e também canto) de John Hutchinson – cuja colaboração terminaria pouco depois – fazem deste episódio um momento de descoberta de luz rumo ao momento que mudaria o rumo da sorte na vida artística de David Bowie.

Além deste corpo de maquetes – que ao longo deste ano foram surgindo em edições em vinil – a caixa / livro Conversation Piece junta ainda memórias das sessões gravadas para a BBC em 1969 e ainda uma coleção remasterizada dos temas então editados em disco (singles e LP), incluindo aqui a versão italiana Ragazzo Solo Ragazza Sola e um álbum extra que revela uma nova mistura do álbum de 1969 assinada por Tony Visconti. Contra a semana de estúdio que lhe fora dada em 1969, agora Tony Visconti teve tempo para valorizar os detalhes da gravação. E um dos exemplos desse novo labor mais cuidado surge num aproveitamento mais cuidado da orquestra em Wide Eyed Boy From Free Cloud (que por acaso era a canção do disco de que Bowie mais gostava). Outra das novidades desta nova versão do álbum é o facto de integrar Conversation Piece, que na altura não “coube” na face B por falta de capacidade do corte de vinil em registar mais do que 20 minutos de música em cada lado do disco.

O livro que acompanha esta edição junta não apenas textos sobre todas as canções e uma narrativa sobre este período, como acrescenta ainda fotografias e documentos da época que acrescentam dados e olhares a esta história. E assim se conta (e bem) a história de um ano na vida de David Bowie.

“Conversation Piece”, de David Bowie, é uma caixa de 5CD e um livro disponível em edição da Warner Music.

“Space Oddity” 2019 Mix é editado também em separado, estando disponível (com capa alternativa) em LP e CD.

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