Três Tristes Tigres: com mínima luz para um máximo de possibilidades

Depois de um longo silêncio, eis que surge um novo álbum de Três Tristes Tigres, juntando novamente Ana Deus e Alexandre Soares com as palavras de Regina Guimarães. Tem por título “Mínima Luz” e tem edições em diversos formatos (o vinil chega no fim do mês). Texto: Nuno Galopim

Foto: Cristina Pinto

Há coisas que, de facto, fazem sentido… E depois de ouvir (e ler) as explicações da Ana Deus e do Alexandre Soares, tudo faz sentido… Vamos por partes. Da memória que temos sob o nome Três Tristes Tigres guardamos episódios marcantes (e sempre recomendáveis) do melhor que a música pop/rock mais inquieta e desafiante nos deu a escutar entre nós.

A obra é (ou antes, era até aqui) relativamente curta, mas os álbuns Guia Espiritual (1996) e Comum (1998) dificilmente ficariam de fora de uma lista com o que de melhor se fez entre nós nos anos 90. Mas chega de elogios ao passado, que é do presente que se fala. Quis o percurso dos dois músicos (e ambos têm um antes e um depois por caminhos seus) que se fizesse um silêncio. Houve depois um reencontro, e com Osso Vaidoso retomaram o gosto de explorar sons e palavras, embora num outro contexto estético. O tempo ditou outras vontades. E damos por nós em 2020 com um álbum que os volta a juntar. E num espaço que, de certa forma, é a encruzilhada onde se encontram as experiências que traziam tanto das memórias mais antigas como Três Tristes Tigres como as que mais recentemente tinham dado a carne ao Osso Vaidoso… A isto juntaram quem são hoje e o que procuram mais adiante… Assim nasce esta Mínima Luz. E faz sentido que assinem o disco como Três Tristes Tigres…

O caminho interrompido depois de Comum é aqui retomado num novo contexto, num novo tempo, mas com personagens comuns e um mesmo gosto por não se conformarem com o que antes já estava feito. Mínima Luz junta ecos da carnalidade elétrica e minimalista do Osso Vaidoso à vastidão de possibilidades que sempre caracterizou Três Tristes Tigres. E estando nesse território, naturalmente, voltam a ter peso as palavras de Regina Guimarães, que habita esta aventura desde a sua estreia, em Partes Sensíveis (em 1993). Pop exploratória? Sim, pode ser uma forma de a definirmos. Não como fruto do acaso. Mas como resultado de uma inquietude artística que procura, molda, encontra e desenvolve novas ideias. Nunca conformados. Nunca iguais. Ou seja, estamos em terreno Três Tristes Tigres. Tudo faz sentido…

E agora escutemos as suas palavras…

Depois do álbum Comum houve uma longa pausa. O que vos fez parar por essa altura?

Ana Deus – Terei sido responsável por essa paragem… Passei grande parte da minha gravidez de gémeos a compor e a gravar o Guia Espiritual; sem problema algum, até com mais emotividade e com a voz num fio. Mas durante o Comum, ter três filhos pequenos a precisar de atenção desligou-me um pouco do processo. Não foi um disco a meias como o Guia, onde estive presente do princípio ao fim. Foi feito por partes, instrumental primeiro e depois meter voz por cima (com a exceção do Espécie, feita “à moda antiga”). Com o andar da carruagem e com os concertos que se lhe seguiram comecei a sentir-me a mais (ou a menos). Achei-me irrelevante. Era um comboio em movimento, em que, ora desaceleravam para entrar uma voz que não acrescentava nada, ora tinha de saltar com o meu fraco instrumento e caía desamparada. Não pensei que estava a acabar nada. Achei que iriam continuar, com outro nome certamente, mas que iriam continuar nesse trilho.

O aparecimento do projeto Osso Vaidoso abriu espaço a experiências diferentes do que poderiam fazer como Três Tristes Tigres?

Alexandre Soares (AS) O Osso Vaidoso partiu de um convite que eu fiz à Ana. Nós estivemos uns tempos sem trabalhar juntos. Eu fazer uma coisa em Lisboa que se chamava Meia Noite e uma Guitarra e era suposto convidar alguém. Convidei a Ana e no fundo foi o nosso recomeço a trabalhar em conjunto. E daí apareceu o projeto Osso Vaidoso que, à partida, combinámos que seria uma coisa minimal de guitarra e voz e sobre textos que a Ana escolheria. Mais recentemente senti interessado em fazer uma coisa com mais instrumentos, com um som maior. E a Ana também falava em trabalhar novamente com os textos da Regina de uma forma mais central. E isso coincidiu com um convite do Teatro Rivoli, no Porto, para fazermos um espetáculo baseado no disco Guia Espiritual. Eu gostei de trabalhar com mais músicos, estava um bocado cansado de estar sempre a tocar só na parte dos instrumentos… E começámos a falar e tudo coincidiu. E achámos que o nome Três Tristes Tigres estava bom para isso, era de facto um som maior. Começámos a trabalhar assim e fizemos o disco nos últimos dois anos, com alguns intervalos.

AD – Quando se começa não se prevê. Mas no Osso, no primeiro disco Animal, pude “forrar as paredes” do que passei a fazer nesse período sem banda. A interpretação de poesia mais ou menos cantada/entoada/falada. O “Elogio da pobreza”, a “Cola cola song” e o “Matematicamente” são exemplos de poemas que comecei por “recitar” em sessões de poesia e que mesmo depois de musicados ainda transportam esse “dizer”. A essas juntámos-lhe outras já feitas de raiz a duas mãos. O disco Miopia partiu da mesma ideia base, musicar poemas já existentes de vários autores. Mas com mais sujidade, que este Mínima Luz também terá… talvez.

Os concertos que deram nova vida às canções do “Guia Espiritual” foram mais do que apenas revisitações de (boas) memórias?

AD – Sim, foram a criação de futuras boas memórias. Para mim melhores do que no passado.

AS – Sim foram. Nós alterámos e juntámos até algumas coisas do Comum. E tivemos algumas boas surpresas. Algumas estavam muito o que somos hoje e outras fomos alterando até ficarem o que queríamos delas hoje.

O que vos fez reativar criativamente o grupo?

AS – Quando preparámos as coisas para o Rivoli depois aproveitámos e fizemos espetáculos ao vivo e demo-nos muito bem. E agora acho que estamos com uma equipa muito boa.

Entre as canções de “Mínima Luz” parece haver tanto heranças das experiências com eletrónicas que vinham dos ambientes dos dias de “Comum”, mas parecem acrescentar uma carnalidade elétrica mais despida explorada com Osso Vaidoso.

AS – É mesmo isso! Esta parte elétrica vem muito no desenvolvimento do Osso Vaidoso, mais despida. E a minha ideia era, com a eletrónica, não usar muito processamento na guitarra elétrica. Noutras coisas mais ambientais ponho uma acústica, mas não investi muito nisso… Queria que esta coisa elétrica que vinha do Osso cruzasse com esta eletrónica que eu vinha a desenvolver um bocado em privado (tirando coisas que faço para bailado e outros trabalhos).

AD – O Mínima Luz é um “primeiro” disco, tateia o caminho como o Guia Espiritual. Semelhanças com Osso serão inevitáveis pois é a nossa experiência comum mais recente, o nosso “retrato” mais atualizado. No entanto aposto o dedo mindinho em como, havendo um segundo disco, a coisa vai complicar. 

O disco é um encontro de caminhos?

AD – Certamente! Entre os três principalmente. Depois os concertos contruirão outros. Começa por uma espécie de plasma, de nuvem de ideias, ou até antes delas. O que é dito e o que fica por dizer.  Somos os três muito diferentes. Acho que posso dizer que aquilo que julgo ser natural em mim, desde sempre, de atenção ao pormenor, não no sentido de corrigir o erro, mas na curiosidade pelas miniaturas do mundo me ajuda a zoomar e a entrar pelo trabalho dos outros. Na construção deste disco nem o Alexandre leu as letras nem a Regina ouviu as músicas antes. Elas vão caindo durante o ensaio em cima do som como se não houvesse trabalho anterior, algumas das gravações do disco ainda são desse momento inicial. Ainda não sei explicar muito bem, acho que é como a criação do mundo, um caos que se organiza por leis naturais.

O desafio de experimentar formas para a canção é um estímulo fundamental para trabalhar como Três Tristes Tigres?

AD – Não haver travão a não ser o travão de não fazer o mais fácil. Sei que em TTT não adianta facilitar, vai direto pró lixo.

AS – Experimentar é importante. Sem ter a desculpa do isto foi aleatório, foi à sorte. Não… Mas acho que a experiência, primeiro improvisar, depois desenvolver, essas experiências, são feitas de uma forma muito cuidada. Às vezes uso materiais duros, não muito lapidados, mas são escolhidos e desenvolvidos para ficar assim. É mesmo uma forma de desenvolver as coisas e eu procuro mesmo aquele som final. Não é porque não consegui ou porque podia ter feito mais ou ter mais roupagem. Não. Encontramos mais ou menos o modelo que queríamos. E é assim.

Sentiram diferenças em vós ao vestir novamente a pele de tigres? E como se manifestaram essas mudanças na criação das canções?

AD – A pele é a que se foi ganhando. A diferença é natural vem com a vida. Acho-me mais competente. Alguns temas são feitos já com a perspectiva da força do “ao vivo” como o “Estado de espírito” por exemplo, outras são mesmo para o disco, para cantar ao ouvido, como o “Tigre”. Talvez a grande diferença, em relação a outros projetos, seja já saber quem está do lado de lá, respeitar de alguma forma a memória; não fazendo o que se fez, isso está sempre fora de questão, mas fazendo com pinças. Os Tigres têm um património de ressonância

AS – Na realidade isto foi colando, No Osso estava com vontade de fazer mais som. Ao mesmo temo estava a trabalhar com eletrónicas para mim. Ainda não tinha mostrado em disco… Porque andei muito tempo fora dos discos. Andei nas danças, nos filmes, no teatro. E agora, se calhar, estou a voltar aos discos. Ando em gravações, na minha sala… E acho que vou por aqui agora.

Escutaram os vossos discos antigos antes ou durante o processo de criação deste novo álbum?

AD – Tivemos de ouvir para os concertos de 2017/2018, para estudar alguma da estrutura, e para decidir como refazer.  Para fazer este álbum não. Aliás, ouço muito pouca música quando estou a fazer canções, não quero ser “atravessada” por canções de outros. No entanto, à posteriori, às vezes ouço semelhanças. Será o ar dos tempos ou engano dos sentidos.

AS – Não escutei nada. Só ao princípio quando estava a escutar as músicas para as fazermos ao vivo. Mas não houve uma procura… Fomos andando… Partimos do que somos agora.

Editam o álbum num tempo difícil para as artes em geral (e a música em particular). Podiam ter adiado o lançamento, mas optaram por avançar na mesma. Porquê?

AD – Adiámos por pouco tempo. Ficámos “sem ação” com o sucedido como toda a gente. De alguma forma a epidemia aqui em minha casa já se “sentia” . Temos um filho que vive na China, por razões profissionais, e em janeiro já estávamos a comprar máscaras para ele. No entanto pensávamos que seria como a gripe das aves, bem menos grave. Decidimos avançar porque estando o disco feito, e apesar de não haver concertos, ele tem a sua vida própria. E ainda bem que o fizemos, está a ser muito bem recebido e ouvido; e não havendo dinheiro dos concertos vai ajudar-nos a passar esta fase difícil. Mesmo havendo edição digital está a vender muito bem.  Estou muito grata.

AS – A princípio ficámos todos muito tocados e magoados como pessoas com este momento ser tão difícil para tanta gente. Passado esse arranque este é ainda um momento difícil, mas é também um momento para continuar a viver. Se tivermos de viver de uma diferente vivemos de uma forma diferente. Mas o disco estava pronto. Se não o editássemos eu ia ouvir e querer começar a mudar coisas que não eram para mudar… E acho bem que esteja cá fora… Agora já há menos gente em casa. Há novas regras. E as regras se forem respeitadas acho que todos temos o direito e a possibilidade de sair e fazer o nosso trabalho.

Que vida imaginam agora para estas canções?

AD – No futuro próximo desejo sobretudo que, apesar das precauções necessárias, se criem condições para haver espetáculos. Desejo também que as canções tenham uma longa vida como as anteriores dos outros discos. Que cresçam ao vivo, que mudem.

AS – O futuro será a recriação disto em grupo. Antes, ensaiar muito… Ao vivo não se recria o disco. Usa-se o disco para fazer mais qualquer coisa também.

O disco existirá em que tipo de formatos? Para já há uma edição digital…

AD – CD (digipack) e vinil, ambos os formatos têm as letras impressas no interior.  Pode ser comprado através do email correiodostigres@gmail.com.

AS – A Ana está a fazer a distribuição dos CD e o vinil sai no fim de maio.

E do futuro? O que mais vos preocupa sobre os tempos que temos pela frente?

AS – Preocupa-me em relação a toda a gente. As condições para continuar a viver. Ter esperança e acreditar que podem continuar a trabalhar. Isto não é ser otimista, mas acho que é uma questão de tempo. Se não se conseguir tudo adaptamo-nos. É isso que fazem os seres humanos.

AD – Preocupa-me os que ficam pelo caminho. A desigualdade a aumentar. A ameaça diária à liberdade em nome da prudência não me parece assim tão prudente. O espírito de vigilante sobre o outro, sobre o vizinho. O discurso e comportamento xenófobo. Que o futuro seja construído a corrigir os erros que agora ficaram ainda mais evidentes. A deslocalização da produção; os atentados à vida das espécies, da natureza; a ganância desmedida que só nos vai enterrar, etc etc… Está na hora!

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