Formado em música eletrónica entre o MIT e o Berklee College of Music, com carreira sobretudo centrada no ensino, o venezuelano herdou sugestões da eletrónica ambiental e dos minimalistas para criar uma música que expressa a sua identidade de tempo e lugar. É uma das (re)descobertas do ano. Texto: Nuno Galopim

Quantas vezes a história da música nos é contada por figuras geográfica ou culturalmente colocadas juntos dos epicentros das atenções e dos focos das rotas da divulgação. Habituámo-nos a encontrar focos de invenção exploratória da música eletrónica na Europa continental da segunda metade do século XX (e é um facto), assim como dali emergiram experiências que alastraram à criação “popular”. De uma outra geografia, a norte-americama, emergiu na década de 60 um grupo de compositores que desafiou os cânones e colocou no mapa das atenções um espaço ao qual acabou atribuída a designação de minimalismo… Mas ambos, mesmo em terrenos de vanguarda, estavam perto dos centros de decisão e ação da “cultura” discográfica… A explosão da comunicação digital no século XXI tem permitido (re)descobrir outros pólos de criação para lá destas fronteiras “clássicas”… Artigos em revistas, compilações temáticas e edições históricas estão assim a juntar outras contribuições a uma história que, mesmo partilhando raízes comuns, na verdade gerou mais frentes de crescimento que, em paralelo, desenvolveram (com marcas identitárias que vão do pessoal ao local) outros casos que, assim, nos permitem contar a história dos mesmos períodos mas com muito mais informação (e amplitude cultural).
O venezuelano Miguel Noya é um nome que, se até aqui podia ser conhecido pelos mais interessados e atentos seguidores dos espaços da música eletrónica, agora tem, numa compilação lançada pela Phantom Limb, um cartão de apresentação que nos permite a todos não só (re)descobrir a sua obra como juntar a Venezuela como ponto a considerar no mapa da evolução destes universos da criação musical.
Com uma formação que o fez passar pelo Berklee College of Music e o MIT, onde completou estudos nas áreas de Música Eletrónica e Som Digital, Miguel Noya acabou por se fixar em Caracas, talhando uma carreira como professor ao mesmo tempo que foi criando música, começando a editar discos nos anos 80, alguns apenas em formato de cassete, por vezes lançados em modelos de auto-edição. Estreou-se em 1984 em “Gran Sabana” (editado em LP e hoje uma raridade no circuito do colecionismo). E seguiram-se títulos que foram definindo um percurso onde se cruzam interesses pela música repetitiva (houve já quem o descrevesse como um autor de “minimalismo mântrico”, podendo “Inoculation” ser aqui um bom exemplo), ocasionalmente juntando elementos que culturalmente sugerem alicerces locais (sugestões sonoridades da floresta, como em “Tactil” ou de rituais de povos nativos, como em “Huellas Circulares”), notando-se ainda um gosto em explorar a música num quadro semelhante ao dos autores das esferas ambient da criação eletrónica (neste caso escutar “Aire” ou “Contemplacion”). Por vezes, como se nota em “Parsec”, brota da música uma intensidade efusiva, podemos dizer mesmo dançável, que não será estranha aos caminhos que a música eletrónica então estava igualmente a desenhar na Europa e Estados Unidos. “Parsec”, curiosamente, tem um pé no laboratório experimental e outro na pista de dança… E não seria presença num catálogo (da época) de uma ZTT, ao lado de uns Art Of Noise ou Andrew Poppy.
Todos os exemplos que cito integram o alinhamento do duplo álbum “Canciónes Intactas”, que resulta de uma reunião de peças originalmente gravadas na segunda metade dos anos 80. E que correspondem assim a uma etapa de exploração de possibilidades que integram tanto as primeiras visões ambient levantadas por Brian Eno como as consequências diretas das obras dos primeiros minimalistas. E daí que seja de absoluta relevância a visita às duas partes de Mega Brain Focos que ocupam as faces C e D desta compilação. Peças de duração de 17.30 minutos cada uma, que alargam o sentido contemplativo e o investimento emocional (e envolvente) da repetição para nos fazer mergulhar numa experiência algo transcendental que baralha sentidos de tempo e lugar. “Canciónes Intactas” é, para quem não conhece a obra de Miguel Noya, um portal de acesso à vontade em descobrir mais. Não apenas na sua obra… Mas entre os demais exploradores que a música eletrónica conheceu fora de Dusseldorf, Colónia, Munique, Paris, Lyon, Sheffield, Detroit, Chicago, Nova Iorque ou outros centros que costumam ser referência mais comum (e correta, claro) quando se quer navegar por entre os caminhos destes sons.
“Canciónes Intactas”, de Miguel Noya, está disponível em 2LP e nas plataformas digitais numa edição da Phantom Limb