Histórias de Berlim, segundo os Einsturzende Neubauten

O novo disco dos Einsturzende Neubauten, que corresponde ao seu primeiro álbum de inéditos em estúdio em mais de uma década, não volta as costas à sua identidade, mas arrumas as ideias musicais e narrativas num disco que só foi possível ao fim de 40 anos de vida ativa do grupo. Texto: Nuno Galopim

Há 40 anos Berlim era uma cidade diferente. Rodeada por um muro, afastada, distante, acolheu culturas e ideias diferentes, que ali floresciam com outro sentido de liberdade. Magoada por décadas de uma história que ali cravejara feridas, dos anos do nazismo e da destruição no final da guerra ao tempos de divisão e separação que depois conheceu. Ao contrário de cidades como Colónia ou Dusseldorf, que tinham vivido décadas de outra prosperidade económica e tinham recebido os focos das atenções do mundo da música nos anos 70, Berlim Ocidental não deixaram nunca de ser palco para figuras e visões. Afinal foi ali que nasceram os Tangerine Dream. E no final dos anos 70 aquela foi a casa de David Bowie e Iggy Pop…

Em 1980 da cultura underground de Berlim Ocidental emergiu uma das mais importantes forças de criação e ousadia que a música ali criada viu nascer. Aliava um sentido exploratório a marcas de uma cultura industrial, de modo contudo bem distinto do que animara alguns pioneiros da música eletrónica. O interesse pela exploração de sons gerados por objetos (sobretudo metais e ferramentas), pela sua percussão, na verdade, podia ter até ligações mais próximas com alicerces da música concreta. Mas o contexto (cultural, social, até mesmo político) era outro. Uma tensão urbana contemporânea passava por ali. O próprio nome do grupo, que em português poderia ser traduzido como edifícios em colapso, dava conta de uma força com potencial de pode construir algo novo depois da destruição. Afinal, nada mais berlinense… E num quadro distinto, com um som diferente, os Einsturzende Neubauten entram em cena e conquistam um lugar num panorama musical europeu sempre em mutação. Os anos passaram… Blixa Bargeld, um dos fundadores do grupo e a sua voz e grande força criativa, dividiu atenções, anos a fio, entre os Einsturzende Neubauten e Nick Cave, tendo integrado os Bad Seeds de 1983 a 2003. Desde então o grupo multiplicou-se em projetos. Aos novos discos e estrada juntou uma série de lançamentos de música mais experimental. Apresentou uma obra destinada a assinalar o centenário da eclosão da I Guerra Mundial (que fixou depois no álbum “Lament”). Mas apesar da atividade, sobretudo intensa na estrada por ocasião de uma digressão que a partir de 2015 assinalou os 35 anos de atividade, havia um silêncio a ganhar forma. Alles in Allem, agora, resolve o aparente vazio, juntando à já vasta discografia dos Einsturzende Neubauten um dos seus melhores discos. E um daqueles que, tal como há poucos dias referia em relação aos Pop Dell’Arte, não podia ter nascido antes. Porque este é um disco que só pode ganhar estas formas depois de todo um percurso vivido.

O disco apresenta dez canções pelas quais passam marcas de vivências berlinenses. Umas cruzam-se com as histórias de vida dos músicos. Outras com lugares ou momentos que marcaram a cidade. Em Grazer Damm o próprio Blixa lembra cenas da sua infância no bairro de Schönberg. E em Am Landwehrkanal evoca a morte de Rosa Luxemburgo em Berlim, em 1919. O disco molda essa dimensão narrativa num ciclo de dez canções que pontualmente vibram marcas da genética “industrial” dos Einsturzende Neubauten, mas arrumadas em canções de arestas aprumadas, seja nos instantes dominados por batidas insistentes (como em Ten Grand Goldie que abre o alinhamento) ou em episódios cenicamente mais elaborados (Zivillizatorisches Missgeschick) e mais ainda em baladas orquestrais como Taschen, Grazer Damm ou Templehof, que parecem estabelecer possíveis rotas paralelas de afinidade com buscas formais que o velho parceiro Nick Cave tem desenvolvido nos tempos mais recentes.

Alles in Allem não é um disco de cedência ou de rendição. Pelo contrário. É a natural expressão de uma história com 40 anos vividos sob indepenência, liberdade e fulgor autoral. As canções são mais acessíveis (algo que era já evidente em Alles Wieder Oten, de 2007). Mas não cedem um milímetro na afirmação de uma identidade. Ainda política, social e cultural bem demarcada. Ninguém mais podia fazer este disco. E só aos 40 anos de vida conjunta os Einsturzende Neubauten o poderiam ter criado. Todo um caminho para chegar aqui. E em mãos ficamos com um disco que herda toda uma história que cruza a de quem faz a música com a do lugar onde ela nasce. Um dos grandes discos de 2020, podem crer.

“Alles in Allem” dos Einsturzende Neubauten, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais, numa edição da Potomak

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