Uma caixa de 7 CD recupera os álbuns “The Idiot” e “Lust For Life” e outras gravações do período em que David Bowie e Iggy Pop tomaram a cidade de Berlim como epicentro do seu mundo (vivencial e criativo). Texto: Nuno Galopim
A separação dos Stooges e um problema de dependência que parecia difícil de vencer (e que levou mesmo a uma passagem por uma clínica de desintoxicação) deixara Iggy Pop sem um sentido evidente para o seu percurso. A década de 70 tinha chegado a meio, os ecos da sua obra começavam a surgir apontados como referências inspiradoras para uma “revolução” punk que começava a ganhar forma em Nova Iorque, mas sobre o seu futuro próximo faltavam respostas, caminhos… David Bowie, que fora um dos poucos a visitá-lo na clínica pela qual passou, convidou-o para acompanhar a Isolar – The 1976 Tour, digressão que se seguiu ao lançamento do álbum Station To Station. A dimensão da operação e o bom ambiente partilhado junto de Bowie abriram alas para uma aproximação ainda maior entre ambos. Também em fuga de um período de dependência que o levara a abismos profundos, Bowie descobrira num livro a pista para a sua próxima paragem. E da leitura das Berlin Stories de Christopher Isherwood nasceu uma mudança de armas e bagagens para a cidade alemã, que então vivia um ambiente de liberdade, embora estivesse fechada dentro de um muro. Com Bowie e os seus amigos Iggy Pop partilhou aqueles tempos de Berlim, fixando-os numa série de canções que, mais de 40 anos depois, se transformaram em dois dos mais marcantes e influentes dos seus discos. De resto, a tantas vezes falada “trilogia” berlinense de Bowie na verdade corresponde a um volume maior de discos. Serão cinco de estúdio e dois ao vivo, quatro assinados com o nome de Bowie na capa, os restantes por Iggy Pop. O ponto de vista de Bowie quanto a este período foi recentemente revisitado na caixa A New Career in a New Town (1977-1982). Agora é a vez de se completar o retrato com uma caixa na qual Iggy Pop recorda aqueles que foram os seus primeiros Bowie Years. E digo primeiros porque, anos depois, em 1986, voltaram a colaborar, gravando Bowie vários temas criados em parceria entre ambos no seu álbum Tonight (1984) e acabando depois a produzir Blah Blah Blah (1986), de Iggy Pop.
A caixa The Bowie Years começa por nos colocar perante The Idiot e Lust For Life, os álbuns de estúdio nascidos nesta etapa (e ambos editados em 1977). O primeiro teve, tal como Low de Bowie, uma génese iniciada nos estúdios do mítico Chateau d’Herouville, em França (os mesmos onde gravaram José Mário Branco, Sérgio Godinho ou José Afonso). Reza a mitologia que houve gravações de canções de The Idiot antes de Low, pelo que este disco guardará em si os primeiros sinais da “etapa berlinense” (na verdade só depois das sessões em França o disco conheceria algum trabalho adicional em Munique e, depois, Berlim). Ficou célebre uma descrição do próprio Iggy Pop ao retratar The Idiot como um encontro entre James Brown e os Kraftwerk. E de facto a comparação cabe no disco que nem uma luva. Há um fulgor dançável a animar a música de um modo diferente face às vidas anteriores de Iggy Pop. E a arrumação dos ritmos e clareza das linhas, assimilada dos Kraftwerk, juntamente com uma presença de eletrónicas, acentuava mais ainda a ousadia que ali se manifestava. Aqui nasciam temas futuramente reconhecidos como clássicos como Nightclubbing, Funtime, China Girl ou Sister Midnight, os dois últimos lançados como single e ambos depois regravados por Bowie em discos seus (no caso de Sister Midnight com algumas alterações, acabando a canção renomeada como Red Money). Todas as canções do álbum são de Bowie, sendo Sister Midnight coassinada pelo guitarrista Carlos Alomar. Bowie produziu o disco e tocou em todos os temas.
Ao contrário de The Idiot, todo o alinhamento de Lust For Life, que seria lançado poucos meses depois, nasceu integralmente nos estúdios Hansa, em Berlim, desta vez com Bowie a partilhar a produção com o próprio Iggy e com Colin Thurston. Bowie era uma vez mais a figura em evidência na autoria das canções, salvo apenas Sixteen, de Iggy Pop, e The Passenger, do guitarrista Ricky Gardiner (canção originalmente “escondida” no lado B do single Success mas que o tempo trataria com outro respeito). O alinhamento inclui ainda temas como Tonight (o mesmo que daria título ao álbum de 1984 de Bowie) ou Lust For Life, que esperou anos a fio até que a banda sonora de Trainspotting o transformou numa das canções de maior popularidade entre a obra de Iggy Pop. Na verdade, apesar do aplauso da crítica, os dois álbuns e os respetivos singles deles extraídos não geraram na época quaisquer episódios maiores de sucesso. Singles como China Girl, Sister Midnight, Success ou Lust For Life não surgiram sequer nas tabelas de vendas no Reino Unido ou EUA, e apenas o último do lote referido chamou atenções na Bélgica e Holanda. Mais de 40 anos depois todos eles são clássicos aclamados. E do alinhamento destes dois álbuns nasceram versões célebres assinadas por nomes como os de Grace Jones (Nightclubbing), Peter Murphy (Funtime), Duran Duran (Success), Martin L. Gore (Tiny Girls) ou Siouxsie & The Banshees (The Passenger), este último representando um daqueles casos em que a versão despertou atenções sobre o original.
Aos dois álbuns de estúdio a caixa junta uma série de extras. O maior volume de extras chega de gravações de concertos de Iggy Pop na Idiot Tour, em ambas tendo David Bowie tomado o lugar de teclista. Uma das gravações corresponde à que teve edição em disco em 1978 no álbum TV Eye, que reunia registos captados em três atuações nos EUA entre maio e outubro de 1977. São depois aqui incluídas depois as gravações inéditas de três outras atuações da mesma digressão: Live at The Rainbow Theatre, London (onde atuou entre 5 e 7 de março), Live at The Agora, Cleveland (de 21 a 23 de março) e Live at Mantra Studio, Chicago (a 28 de março, esta atuação na verdade representando uma sessão num estúdio de rádio). Pelos alinhamentos dos concertos há, além das canções da etapa berlinense, episódios de revisitação da obra anterior de Iggy Pop, nomeadamente clássicos dos tempos dos Stooges. Além das muitas gravações ao vivo, a caixa inclui um outro CD com as versões lançadas em single, misturas alternativas de algumas faixas e um excerto de uma entrevista de Iggy Pop na qual lembra um mundo novo que descobriu ao lado de Bowie (como o expressionismo, o dadaísmo ou modo de escolher um vinho) a criação de The Idiot. Sobre Funtime conta ali como Bowie lhe sugeriu que cantasse como Mae West ou como Nightblubbing nasceu depois de uma noite passada entre amigos. No fim esta contribuição “spoken word” fica com sabor a pouco. Para quando teremos, nestas caixas temáticas, um CD de storytelling pelos autores dos respetivos discos?… Numa entrevista de jornalista e não ao estilo dos Q&A promocionais… Um pouco como o fazem algumas edições de DVD e Blu-Ray na hora de evocar filmes com história. Fica a ideia…
“The Bowie Years”, de Iggy Pop, é uma caixa de 7CD, acompanhada por um ‘booklet’ de 40 páginas, numa edição da Universal.