Estreado em 1947, “Fado: História de uma Cantadeira” foi a segunda experiência de Amália no cinema, cimentando a sua popularidade numa altura em que a sua obra cresceu sobretudo entre o teatro e o grande ecrã. Os êxitos em disco chegariam depois. Texto: Nuno Galopim

Apesar de ter já gravado alguns discos de 78 rotações no Brasil, foi nos palcos do teatro e nos ecrãs do cinema que Amália Rodrigues conquistou e cimentou um estatuto de popularidade maior durante a década de 40. Imediatamente após uma promissora estreia no Retiro da Severa, passando também por outras importantes casas de fado, foi no teatro que Amália, ao longo da década de 40, começou a alargar o seu repertório, público e sucesso. O passo seguinte foi o cinema, cabendo a estreia a Capas Negras, filme de Armando de Miranda estreado em 1947, no qual contracenava com Alberto Ribeiro. Pouco depois Amália surgia num segundo filme, desta vez sem uma outra figura maior da música ao seu lado. O elenco chamava grandes estrelas do cinema de então como António Silva (o primeiro empresário com perfil “espertalhão”) ou Vasco Santana (este num papel mais discreto como taberneiro), chamava ainda Eugénio Salvador (que estava já longe de ser desconhecido por aqueles dias) e contava com Virgílio Teixeira como o par romântico para Amália. Ela contudo era a indiscutível protagonista. E mais ainda do que Capas Negras, Fado: História de Uma Cantadeira, transformou-se num importante marco na sua carreira.
O filme, de Perdigão Queiroga (que se estreava na realização), propunha uma narrativa que fazia espelho com alguns ecos da própria história de vida da protagonista, nomeadamente o facto de ser uma rapariga do povo que gostava de cantar, que ganhava a vida a vender fruta, tinha casado com um guitarrista, conhecia Lisboa como cenário dos seus dias e conheceu a sua oportunidade (prova que superou com sucesso) numa noite em que se apresentou numa casa de fados. Todo o resto da trama, desde a história de uma mãe que também cantava à ascensão meteórica através das boas graças de um empresário, são notas de ficção que separam naturalmente o filme de uma qualquer intenção de retrato à la biopic, e vincam diferenças que a própria Amália gostava de sublinhar. De resto, em várias entrevistas, Amália deixou claras as diferenças entre si e a figura da protagonista Ana Maria, sobretudo nas palavras (que traduziam uma personalidade que de facto não era a sua). Amália apontava sobretudo como bem distintas de palavras que ela mesma poderia proferir o diálogo com o Lingrinhas (Eugénio Salvador) na reta final do filme, quando desenha um quadro de mulher submissa perante o que poderiam ter sido comportamentos diferentes do guitarrista Júlio (Virgílio Teixeira). Muitos pensaram, contudo, que o filme esbatia as diferenças entre os factos e a ficção na vida de Amálial. E chegaram mesmo a confundir a irmã mais nova da fadista com a personagem da Luisnha…



Fado: História de Uma Cantadeira, apoia numa trama romântica afogada em valores de classe e de género que traduziam socialmente aquele tempo (ou o modo como se pretendia deixá-lo retratado), a clara vontade de explorar no ecrã o potencial da figura e da voz de Amália Rodrigues. Afinal, usando ferramentas de relacionamento com as estrelas da música que o cinema descobriu mal começou a usar o som. Se por um lado a trama romântica e o conflito de classes atravessam a narrativa, apresentando a história de uma cantadeira que é desafiada por um guitarrista (de quem gosta) para cantar em público e acaba elevada a estrela maior do teatro, afastando-se do bairro de Alfama onde viva e dos amigos de outrora, por outro é na presença recorrente da música que se alicerça a solidez de toda a ideia.
Apesar de convocar vários autores, a banda sonora destaca sobretudo a escrita de Frederico de Freitas (partilhando um dos fados com Frederico Valério, um dos nomes de referência na obra de Amália). O Fado de Cada Um, que ouvimos no momento da “estreia” de Ana Maria e que regressa em vários momentos dramaticamente fulcrais na narrativa, é um dos êxitos aqui nascidos. Curiosamente, tendo o filme surgido num tempo de hiato de edições discográficas (entre as gravações no Brasil e o regresso aos estúdios na aurora dos anos 50), Fado: História de Uma Cantadeira, não gerou uma correspondente edição em disco das canções ali apresentadas, hábito que só se tornaria regular na discografia de Amália a partir de Les Amants du Tage. Temos inclusivamente de avançar no tempo até ao registo ao vivo captado no Coliseu em 1987 para encontrarmos fixado em disco um momento do Fado de Cada Um entre um medley.
Visualmente há que destacar a forma como a direção de fotografia explora a paisagem em torno da casa da mãe Rosa (em Alfama, embora ali construída em cenário), sobretudo nas cenas noturnas. E se muitos momentos musicais acontecem de forma aparentemente natural nas cenas em curso (como o ensaio em casa, que de resto nasceu de uma ideia da própria Amália), há outros que valorizam as potencialidades que o cinema pode acrescentar face ao teatro. E isso é notório quer na evocação do quadro de Malhoa como, mais ainda, na cena que a mostra em palco no teatro, revelando a câmara pontos de vista que nunca seriam passíveis de fruir por uma plateia.
Fado: História de Uma Cantadeira teve antestreia no Coliseu do Porto a 28 de novembro de 1947, tendo Amália cantado depois da projeção do filme. Em Lisboa estreou no Cinema Trindade. Dez anos depois, a 13 de março de 1957, este foi o primeiro filme a ser exibido na televisão portuguesa, tendo sido apresentado pela RTP pelas 21.33 horas, pouco depois do início da emissão desse serão.