A canção pop também pode ser uma arma para falar de identidade e do tempo em que vivemos

RIVAthewizard é um alter-ego de um jovem músico do Porto que agora edita pela Chinfrim o seu primeiro álbum. Pop atual e interventiva, com gosto em debater temáticas que vão da identidade aos comportamentos da sociedade e do mundo político. Texto: Nuno Galopim

Chama-se Riva The Wizard (na verdade o “correto” será RIVAthewizard) e acaba de juntar o seu nome à história de 2020 com uma clara vontade em afirmar, acima de tudo, a verdade de uma identidade num caminho que não depende nem dos apetites das modas nem das expectativas dos outros. De uma formação clássica, que lhe deu um ponto de partida para ponderar, com segurança técnica, os azimutes de um rumo profissional, acabou por seguir rumo a um espaço na canção pop. O desejo de comunicar e partilhar sensações e ideias justificam uma opção que, depois de alguns singles como aperitivo, confirmam agora no álbum Loucura Censura todo um quadro consequente de intenções estéticas, sociais e políticas. A pop mostra-se aqui como língua franca que permite não apenas enquadrar mas, sobretudo, comunicar pensamentos e imagens que vincam pensamentos sobre demandas pessoais e coletivas que passam pela afirmação indivudual, pelas relações com os outros como sociedade e até mesmo sobre o mundo político que temos como cenário que acolhe o nosso quotidiano.

Sem prescindir nunca de um pensamento estético claramente bem definido (e que não deixa de traduzir um entendimento com diversos sinais de uma cultura pop global contemporânea), Riva The Wizzard junta depois alguns elementos que distinguem e destacam Loucura Censura entre o mundo de acontecimentos que a cultura digital nos revela a cada semana. Se por um lado temos aqui ecos de uma escola clássica que acredita na criação de um corpo de canções dotadas de um sentido comum que assim se reúnem num álbum (isto por oposição a carreiras que se têm feito da mera edição de canções avulso), por outro devemos reconhecer neste álbum um dois mais evidentes olhares políticos que a canção pop nascida entre nós nos tem dado a escutar. Da política identitária à comunitária, Loucura Censura junta ainda uma voz pop a um espaço de expressão de uma cultura queer que entre nós tem escola reconhecida na poesia, já ganhou figuras de referência no cinema e, na música, começa agora a mostrar em simultâneo várias frentes de afirmação em diversos terrenos estéticos.

Dotadas de uma pulsão exploratória as canções que encontramos em Loucura Censura têm tanto de ousadia e de (saudável) atrevimento como mostram que, apresar de momentos de sintonia com o tom lo-fi e DIY de alguma da música de dança atual, há aqui (sobretudo no plano da construção da cenografia das canções e produção) um caminho com espaço para continuar a procurar. Acima de tudo este é um bom ponto de partida. E as coordenadas que aqui se lançam podem levar estas ideias a outros desafios…

Para conhecer melhor o projeto e compreender do que nos falam estas canções, nada como falar com o Rui Paiva, o músico (do Porto) que aqui assina como Riva The Wizard…

RIVA The Wizard é uma personagem? Um alter-ego? Ou és tu? Como surgiu e como se relaciona contigo?

Não diria que é uma personagem, é sim um alter-ego que age como uma extensão do meu “eu” pessoal, com todas as minhas referências e gostos, mas que difere pela extravagância e desfiltragem com os que os canaliza para a música. Numa forma mais poética, é o arquétipo daquilo que eu sinto poder ser, no seu expoente máximo. Surgiu de uma necessidade que eu senti de me separar e proteger dessa criação desfiltrada.

Onde nasceu o teu interesse pela música eletrónica?

A banda sonora da minha adolescência foi maioritariamente rock progressivo (Pink Floyd, Genesis, Yes, Camel), que, por ter sido um laboratório para o uso de sintetizadores, me fez ganhar curiosidade pela experimentação tímbrica e estética dos grandes mestres dos instrumentos eletrónicos, desde Wendy Carlos a Jean-Michel Jarre, de Isao Tomita a Giorgio Moroder, Kraftwerk, e Vangelis. A par disso, comecei a frequentar discotecas, eventos, e festivais, e aí comecei a interessar-me mais pelo lado não-erudito, mais pop, da música eletrónica, e a identificar-me mais com música eletrónica de dança, principalmente do lado francês, com Justice e principalmente Daft Punk. Recentemente, cada vez mais, alicia-me a experimentação eletrónica num contexto mais pop, com artistas como Charli XCX, Tami T, SOPHIE, e até Arca.

De que modo sentes que a formação em música que tiveste te preparou para o que artística e profissionalmente queres fazer?

A formação clássica que tive (conservatório e superior, na ESMAE) deu-me principalmente as ferramentas necessárias para análise técnica das minhas referências. O conhecimento programático que ganhei no contexto da clássica, principalmente do romantismo tardio e da primeira metade do séc. XX, fizeram-me perceber que há muito em comum entre Mahler e rock, ou entre Stravinsky e metal progressivo, ou entre Debussy e Satie e eletrónica minimal, por exemplo. Tudo o que é válido, tecnicamente, no contexto da composição erudita, é-o de igual forma na composição não-erudita, e isso fez-me ter a capacidade de ser muito eficaz na construção harmónica e melódica de canções.

O disco nasceu como? Em casa, em estúdios? Como convocaste as colaborações e o que procuravas com quem contigo trabalhou?

“Loucura Censura” é um conjunto de canções que fui escrevendo em contextos bastante diferentes, que variaram entre escrever sozinho em casa de madrugada, no meu pequeno estúdio ao piano, e até, como no caso da Fuckboy (lembrança muito viva) em viagens longas de autocarro. Tive o privilégio de ter podido finalizar o disco no Boom Studios, e lembro-me que foi nessa reta final da produção que escrevi a música de abertura (Loucos), onde, por acaso, deixei ligado um sequenciador num dos meus sintetizadores, e comecei a improvisar a cantar por cima. Escrevi a letra toda numa só passagem, e lembro-me que gravei, produzi, e editei a canção toda numa única sessão em menos de 8h. Quanto às colaborações, acho que a mais importante terá sido a do Steve, não só enquanto produtor na Quero Brincar Contigo Pt.1 (que já tinha lançado como single com videoclipe antes do álbum), mas principalmente enquanto misturador. O Steve é meu grande amigo de há muitos anos, cujo crescimento musical eu acompanhei (e ele o meu), e em quem confio totalmente para entender a minha visão estética e materializá-la, na sua própria linguagem, na sua mistura e produção. Na música Fuckboy, por ser uma música com fortes influências de reggaeton e rnb, senti que teria imenso a ganhar com convidar o Matheus Paraízo, também grande amigo, e com quem já tinha colaborado em projetos anteriores. Para além de ser um cantor extremamente talentoso e capaz, achei que poderia ser interessante desafiá-lo a escrever em português, sobre algo que sabia ser importante para ele também, que é a luta pela liberdade sexual.

O álbum é para já uma edição digital. Esse é o fim? Ou a ideia da materialidade de uma edição em suporte físico faz sentido como hipótese a ponderar mais adiante?

A decisão de lançar, por enquanto, apenas em suporte digital, prende-se no risco financeiro que é, neste momento, fazer edição física de um álbum cuja tiragem seria bastante reduzida. O suporte físico não está de fora da mesa, mas poderá ser algo a ponderar para o futuro próximo 🙂

O que te atrai no espaço da canção pop?

A canção pop atrai-me porque preenche um espaço com o qual eu cada vez mais me identifico: o da universalidade. Cresci em meios muito elitistas, tanto o clássico como o rock progressivo, e até alguma da eletrónica mais experimental, onde sinto haver alguma aversão a uma escrita mais universalista, onde se procura simplesmente impressionar pela capacidade técnica ou pela vanguarda estética. Cada vez mais sinto que, enquanto artista, tenho muito mais a ganhar com a composição de canções cujos elementos estruturais sejam acessíveis a públicos de todos os níveis de entendimento musical, e não apenas de um suposto “superior”, com melodias mais simples e orelhudas, e progressões harmónicas mais funcionais e eficazes.

Se por um lado podemos associar a música pop a espaços de prazer e até libertação, por outro este pode ser um veículo de ideias. Encontras aqui espaço de comunicação para uma voz política?

Sem dúvida! A canção pop tem a capacidade de ser um “bicho” no ouvido, algo que, pelas suas características, nos marca e nos faz lembrar dela mesmo até quando não queremos. É por isso que, para mim, tem a capacidade de ser o melhor palco para a instrução e luta políticas. No caso de RIVAthewizard, algumas das mensagens estruturais têm elevado teor político, desde a luta LGBT, à luta antifascista e anti—imperialista, e até à sensibilização para um melhor entendimento da nossa saúde mental. Tudo isto pode ser abordado de várias formas, claro, mas eu sinto ter a capacidade de incorporar isso na canção pop, e com isso tentar dar maior voz às várias lutas sociais.

Podemos fixar ecos de tempos e de lugares através das canções. Procuras fazer isso com a tua música ou tens antes uma demanda mais pessoal?

Todas as canções, como produtos palpáveis que são, serão sempre uma crónica do tempo em que são feitas. Uma das coisas que mais me motiva a escrever da forma que escrevo é reconhecer que, historicamente, obras artísticas têm a grande capacidade não só de imortalizar um determinado sentimento ou luta, mas principalmente de semear e fazer florescer no recetor ideias de algo bom e melhor (o reverso também, claro). Obviamente existe muito uma “purga” pessoal naquilo que crio e escrevo, mas procuro sempre dar-lhe uma luz que, ao ouvinte, possa fazer ver algo novo.

Como te relacionas com as mensagens e opiniões daqueles que te escutam? Ser músico na era das redes sociais muda a relação de quem cria com os rumos que a obra pode tomar?

A era das redes sociais veio aproximar, de forma disruptiva, o criador ao recetor. Os artistas deixaram de ser o poster inacessível das eras anteriores e passaram a ter muito da sua vida, que não só o seu trabalho, mais acessível ao consumidor. Isso, para mim, é positivo: conhecermos as opiniões pessoais, e até políticas, dos artistas que escutamos apenas nos faz conseguir entender melhor a genuinidade (ou ausência dela) do seu trabalho. Eu sou uma pessoa muito sociável e acessível, e tenho em grande consideração a opinião e conforto das pessoas que me rodeiam e que escutam o meu trabalho, portanto acho que a minha obra terá sempre, de forma quase inconsciente, isso em conta. A isso, as redes sociais apenas trazem acessibilidade e imediatez ao feedback que recebo.

A que tipo (ou tipos) de censura te referes ao usar esse termo no título do álbum?

A expressão “Loucura Censura” é, para mim, uma dicotomia entre as diferentes formas como nós vemos diferentes partes de nós: entre uma loucura que é a minha idealização de tudo aquilo que nos faz sentir desviantes da sociedade (problemas de saúde mental, orientação sexual, identidade de género, e até orientação política, etc.), e uma censura que fazemos a essas partes de nós próprios enquanto mecanismo de defesa. Dizer que Loucura Censura é mostrar que todas essas loucuras que sentimos em nós são algo que, inconscientemente, procuramos censurar, mas, ultimamente, a “premissa” do álbum é de que devemos lutar contra isso, e assumir que são as nossas loucuras aquilo que nos define.

A imagem que associas a RIVA como surge e o que procura sublinhar na música a que dá corpo?

A estética visual de RIVAthewizard é uma extensão daquilo que já disse sobre o seu lado musical. É uma imagem de desviante, de não-conformante, e de shock-value. A acrescentar àquilo que eu universalizo pela a poesia e construção mais pop, visualmente mostro a raiz política e irreverente de tudo aquilo que pretendo dizer.

Há hoje em dia uma mais evidente relação da música portuguesa com expressões identitárias e de liberdade que a cultura queer tem valorizado. Sentes que RIVA The Wizard faz parte dessa história em construção?

Para mim, tudo faz parte de uma história em construção. O que diferentes projetos e vozes têm para dar são apenas forças em diferentes direções, nem que seja uma força para que se continue igual, se for o caso. Sinto que a direção que estou a dar à minha força é positiva e pode apontar luzes a um caminho bom e melhor para a cultura queer, na qual eu próprio fui crescendo; sinto que sou mais uma de várias vozes que, coletivamente, estão a tomar espaços e palcos outrora fechados à cultura queer, e isso sim, é a história da cuja construção eu quero fazer parte.

Como é editar um disco em tempo de pandemia? E como o vais comunicar e mostrar?

Sempre fui um criador muito solitário, sempre usei o estúdio e o trabalho de escriva como refúgio, então o isolamento associado à pandemia veio até permitir que eu tivesse uma desculpa para o fazer de forma mais sistemática. Felizmente tive o privilégio de me manter profissionalmente ativo, o que me deu algum conforto para poder trabalhar mais exaustivamente na produção do álbum. A comunicação está um pouco limitada para todos os artistas: grande parte da comunicação direta com o público é feita nos concertos, atividade que sofreu um imenso corte durante a pandemia, e as vias digitais (transmissões e outras iniciativas online) são possíveis, mas muito dificilmente trazem retorno monetário suficiente para os pequenos artistas. Vou continuar a lançar conteúdo online e a trabalhar em coisas novas, que é o que realisticamente consigo fazer melhor em tempo de pandemia. Recentemente fiz um pequeno concerto para a marcha LGBT do Porto, onde toquei algumas músicas do álbum, e que prontamente irei disponibilizar no YouTube.

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