Nascido de uma investigação jornalística “Amália – Ditadura e Revolução”, de Miguel Carvalho, é mais do que um atento e esclarecedor olhar sobre a vivência da fadista com os regimes antes e depois de 74. Este é também um retrato de uma figura e de um país. Texto: Nuno Galopim
Era preciso um livro como este. Pelas mais variadas razões. Para resolver velhos equívocos e arrumar o clássico “quem conta um conto acrescenta um ponto” que muitos teciam, cada qual à sua maneira, ao encarar as vivências políticas de Amália antes e depois de 1974. Mas o livro serve sobretudo para enqudardar esse apuramento de factos e opiniões em quadros mais vastos, desde a própria narrativa de vida (e obra) de Amália Rodrigues até mesmo à relação dos dois regimes (Amália nem tinha chegado à escola quando caiu a I República) com a sua figura e o próprio fado. O ponto de partida foi uma longa e meticulosa investigação jornalística, da qual tínhamos já saboreado numa edição especial da Visão publicada há alguns meses. Amália – Ditadura e Revolução, leva Miguel Carvalho a aprofundar a contextualização dos factos que apresentara nesses textos de saboroso “aperitivo”, acrescentando olhares bem documentados (e narrativamente bem estruturados) sobre várias etapas da vida de Amália, levando a bom porto o desafio de contar uma história sem ter de a agarrar inevitavelmente a uma única linha cronológica. Os tempos vão-se cruzando. As memórias vão-se arrumando. E no fim a amplitude do retrato é ampla, atenta e muito esclarecedora.
O livro começa por retomar a revelação dos muitos momentos em que Amália não só contribuiu financeiramente para auxiliar famílias de presos políticos durante o Estado Novo, como nota como entre aqueles que orbitavam ao seu redor desde os anos 40 (e antes mesmo, nos ambientes em que viva nos dias de infância e juventude) até às vésperas da revolução sempre houve figuras claramente opositoras do regime. Ao mesmo tempo, e porque assim manda o jornalismo, nota-se como por sua vez o regime procurou regimentar o sucesso de Amália e se quis apropriar do fado como ferramenta da máquina de propaganda. O relacionamento com figuras ligadas ao poder (como Ricardo Espírito Santo) é uma das frentes de exploração de uma narrativa que, ao mesmo tempo, lembra vivências próximas de focos de resistência (e a história de Abandono, mais tarde conhecido como Fado Peniche, passa por aí), recorda episódios protagonizados pela polícia política (onde Amália tinha ficha desde que começara a cantar) e até mesmo relações internacionais que levaram a fadista a atravessar a Cortina de Ferro ainda bem antes de 74. O relacionamento pessoal e artístico com Alain Oulman e o fulgor das transformações que com ele (e os poetas) a sua música viveu a partir da alvorada dos anos 60 ocupa (justificadamente) um dos mais extensos e detalhados segmentos do livro. Outro, igualmente capaz de se comparar ao efeito page turner de um bom romance, é o capítulo que tem por título “As Portas que Abril fechou”. Sim, o título diz tudo, abrindo espaço a mais de 200 páginas nas quais se relata o período difícil de equívoca consciência pública que então vitimou não apenas Amália mas o próprio fado e outras vozes que conheciam exposição e aclamação mediática antes da revolução. Boa leitura, este capítulo, sobretudo para criar um retrato lúcido, objetivo e não ideologicamente comprometido de uma geração de inquisidores da democracia que tomaram lugares de destaque na vida mediática de então, alguns com atitudes em modo mais papista do que o Papa…
Tal como é importante não apagar da memória o que foi o Estado Novo, é bom termos igualmente a consciência de alguns erros que chegaram a germinar na jovem democracia. Amália viveu dias difíceis na segunda metade dos anos 70. E o nosso reencontro coletivo com a sua grandiosidade, a obra única e uma personalidade de raro carisma e inteligência, só começou a ganhar forma com a chegada de contribuições de uma nova geração. Coube aos textos respeitosos (e conhecedores) de Miguel Esteves Cardoso, à admiração de António Variações, ou à experiência pop ao lado de Carlos Paião no Senhor Extraterrestre (que é tantas vezes menorizado mas representa um sinal de abertura de espírito tão raro numa figura com a dimensão de sucesso de uma Amália), o papel de levar muitos a reequacionar, já nos anos 80, a sua relação com Amália. O aparecimento dos Madredeus ou os ecos de heranças fadistas na música de uns Heróis do Mar ou de Anabela Duarte (então nos Mler Ife Dada) são igualmente expressão de mudanças que lhe permitiram voltar a viver no clima de reconhecimento que a imensidão da sua obra merecia. Os recitais no Coliseu dos Recreios, coisa que antes nunca tinha acontecido, são outros sinais dessa mudança de atitude coletiva que confortaram Amália nos seus últimos anos. E é entre todos estes momentos, mostrando uma vasta coleção de entrevistas e uma abrangente recolha de informação entre vários arquivos, que, apesar do título falar em “ditadura e revolução”, este livro de Miguel Carvalho é mais do que apenas uma biografia política. É um retrato de uma figura e da sua relação com a passagem do tempo. E é uma das leituras obrigatórias deste ano.
“Amália – Ditadura e Revolução”, de Miguel Carvalho, é um volume de 603 páginas publicado pela D. Quixote.