Depois de um EP e de um primeiro álbum que mostravam competência nos caminhos do R&B no novo “Agüita” o músico norte-americano alarga o leque de possibilidades para criar um auto-retrato desafiante que reflete mundos referências e de vivências. Texto: Nuno Galopim
Aos 72 anos de vida o LP, que permitiu a criação do conceito de “álbum”, assistiu já a muitos momentos em que um mesmo artista juntou num espaço comum uma série de criações que refletissem diferentes famílias de referências de género (musical), de geografia e cultura (na origem das referências) e por aí adiante… Ou seja, a possibilidade da diversidade é intrínseca a um espaço – o álbum – onde pode caber mais do que apenas uma peça musical. E dos alinhamentos feitos de apenas de mais-do-mesmo a outros em que a cada faixa parece que mudamos de planeta, todas as possibilidades são viáveis. E ainda bem. Menos frequentes serão as ocasiões em que os discos mais próximos deste último pólo conseguem encontrar uma expressão de unidade na exposição de diversidade. Havia um mestre nessa arte… E se olharmos para a capa do segundo álbum de Gabriel Garzón-Montano a sugestão está evidente. Lembram-se de Lovessexy, de Prince? Pois na capa (icónica) desse disco de 1988 e no assumir de Prince como uma referência inspiradora maior encontramos talvez a melhor das chaves possíveis para começar a entrar pelo alinhamento de Agüita, o novo disco de um músico que nasceu e cresceu, de facto, entre todo um universo de possibilidades que agora, pelos vistos, sabre expressar através de um álbum. E aqui reforço esta ideia: a do álbum. Porque é ao escutar a família de composições aqui reunidas que a sua proposta para 2020 o faz destacar.
Se passearem um pouco pelos espaços de escrita publicados online não levarão muito tempo a tropeçar num discurso centrado na ideia de que neste disco habitam três personagens distintas. E depois bla bla bla… Convenhamos que a arte de comunicar uma boa ideia (uma mitologia, se quiserem) é meio caminho para ajudar a “vender” um entusiasmo. Mas é possível olhar para Agüita sem termos de tomar banho nessa conversa mole que até o próprio Gabriel Garzón Montano chegou já a veicular em entrevistas que acabam por traduzir mais um esforço de “comunicação” orientada – como o marketing gosta de fazer, concentrando discurso e imagens num loop que se repete até ser invariavelmente essa a única “verdade” contada – do que uma postura realmente mais confessional ou capaz de falar para além do enlatado de ideias a fazer passar ao jornalista (e atenção que não falta bom discurso confessional e pessoal ao álbum). Este modo de comunicar ideias em entrevistas não é caso único, há que sublinhar. Aliás, esta concentração de um mesmo discurso num mesmo artista em volta do lançamento de um novo disco (ou evento) é bem comum no jornalismo musical (e raros têm a ginástica de um Bowie para saber “vender” uma conversa aparentemente natural e capaz de disfarçar que não esqueceu todos os pontos estratégicos a referir no espaço de tempo das entrevistas). Mas não é disso que vamos falar hoje…
Há em Agüita mais do que a tal narrativa para as três personagens. Na verdade, o álbum permite traduzir algumas das “verdades” que Gabriel Garzón-Montano já nos permitiu conhecer (e aqui vale a pena deixar claro que há uma diferença entre “verdade” e “realismo”, sendo a primeira uma possibilidade artística aberta à eventualidade da ficção, assim o artista o deseje fazer, vide Bowie uma vez mais, e nada contra essa “verdade” mesmo que com ficção). De ascendência francesa (pela mãe) e colombiana (pelo pai), Gabriel Garzón-Montano nasceu e cresceu nos EUA (em concreto no melting pot que é Brooklyn). Entre as aberturas a horizontes diferentes de exposição a músicas (e outras formas) que essas referências já por si levantavam, Gabriel Garzón Montano teve logo na mãe um exemplo de rara amplitude de ação na música. Era mezzo soprano – tendo integrado o Philip Glass Ensemble – mas tocava também vários instrumentos. Entre músicas e timbres o músico certamente cresceu ciente de toda uma vastidão de caminhos que a criação pode tomar. E quando em entrevistas cita nomes que vão de Prince (naturalmente) a Stevie Wonder, Radiohead, Marvin Gaye, Beatles, Parliament, Arca ou Moses Sumney como algumas das suas referências formadoras ou atuais, os trilhos que o trazem até Agüita começam a iluminar-se. Não pela citação direta de caminhos sugeridos… Mas, uma vez mais, pela diversidade de horizontes nas vivências e referências. No fundo, os dados estavam lançados desde o início. Estão no ADN da sua identidade.
A sua história discográfica começou, contudo, por encaminhá-lo para as avenidas de um R&B contemporâneo, desenhado com (boas) filigranas de eletrónicas. Logo em 2014 o EP de estreia Bishouné: Alma del Huila abria uma frente bilingue no título de uma canção que dedicava à mãe (mas que depois cantava em inglês). Três anos depois o álbum Jardín sugeria uma vez mais uma ideia de multiculturalidade, embora a música seguisse ainda no sentido de uma evolução natural do EP de estreia, todavia denunciando já alguns sinais de vontade em olhar mais adiante… Agora, perante um álbum que não esquece o R&B mas que se enriquece com delicadas baladas para cenografia eletrónica, momentos de emoção lírica de grandiosidade quase sinfonista, assimilações folktronica e, depois, evidências bem nítidas de trap e reggaton, Agüita exala um mundo de cores que saem de um aparente armário até aqui fechado para levar (esteticamente) Gabriel Garzón-Montano aonde agora quiser ir… Um pouco como Prince sabia fazer. E se em Muñeca sugere capacidade de inscrever um “êxito” no céu estralado dos gostos atuais e em Someone nos mostra um potencial clássico para gostos R&B, já em canções como Fields, With a Smile ou Blue Dot (onde colabora Theo Blackmann) baralha ideias e mostra como rotulá-lo vai ser impossível. O facto de este ser o primeiro disco que grava para a mui respeitável Jajgajwar, uma etiqueta de referência no panorama indie, ajuda mais ainda a agitar as coisas. E ainda bem…
Pelas palavras das canções passam episódios de expressão de memórias (em Moonless, por exemplo, canta sobre o desaparecimento da mãe, quando tinha apenas 17 anos). Mas também olhares e reflexões que parecem querer criar um auto-retrato. Retrato que junta imagens (além das da capa há três grandes fotos dentro do LP em vinil) que exploram, como Prince o fazia, uma noção de masculinidade que, por si só, sugere marcas de personalidade vincada que a música depois nos permitirá explorar melhor. Se Jardín era um disco competente de R&B (e nem vamos aqui perder muito tempo com a digressão junto de Lenny Kravitz ou o pedido de um sample por Drake), Agüita tem tudo para colocar Gabriel Garzón Montano no mapa das atenções de 2020… Resta agora que as atenções o sabiam notar… E que reparem que não é “o” criador de Muñeca. Ou o de Someone… Mas o autor de um disco que nota que há muito mais em si do que um potencial fazedor de êxitos que traduzam os ecos do momento. Agüita mostra já que a sua personalidade (e referências) tem mais que se lhe diga que uma qualquer afinidade com os ventos da saison… Mas, e nada contra isso, Gabriel Garzón Montano mostra aqui como se pode servir desses aperitivos para depois revelar muito mais. E a descoberta vale mesmo a pena.
“Agüita”, de Gabriel Garzón Montano, está disponível em LP, CD e nas plataformas numa edição da Jagjagwar.